Aracaju (SE), 02 de dezembro de 2024
POR: Adeval Marques
Fonte: Revista Sergipe News
Pub.: 31 de outubro de 2016

Tradição de construção de barcos no Baixo São Francisco se mantém viva

Tradio de construo de barcos no Baixo So Francisco se mantm viva (Imagem: Adeval Marques)

Tradio de construo de barcos no Baixo So Francisco se mantm viva (Imagem: Adeval Marques)

Propriá/SE - A construção de barcos no Baixo São Francisco teve seu auge na entrada do início do século XX quando as canoas de Toldas e Chatas eram o principal transporte de cargas e passageiros dessa região. A quantidade delas na época se perdeu no tempo.

Fragmentos da História da carpintaria naval no Baixo São Francisco

No Baixo São Francisco a carpintaria naval tinha bons mestres que aprendiam e passavam adiante o ofício aos seus auxiliares aprendizes que, munidos do conhecimento das técnicas, mantinham viva a tradição fazendo-a chegar até os nossos dias, já no século XXI. Os mestres eram tão conceituados na arte que empresários do Médio São Francisco, especificamente de Juazeiro, Pirapora, Bom Jesus da Lapa, todos esses lugares situados no Estado de Bahia, e vários outros lugares do País, vinham à procura deles para adquirir seus serviços. Dessa forma o Baixo São Francisco tornou-se referência, também, na carpintaria naval. Era comum, segundo relatos coletados, a frase: “Lugar de mestre bom e fazedor de canoa é em Propriá ou pela região do Baixo São Francisco.”. Essa frase foi extraída de uma entrevista de Adeval Marques com o mestre Pedro Amorim que era filho de um dos maiores mestres navais de Propriá, chamado de Minervino Amorim.

Os mestres no "Rio de Cima"

Segundo Pedro Amorim – já falecido – seu pai foi contratado para construir uma canoa de tolda no Médio São Francisco onde a embarcação recebeu o nome de Sergipana. Também foram muitos os mestres que foram para o “Rio de Cima”, como é chamado o Médio São Francisco, e não mais voltaram para o Baixo São Francisco porque, em 1960, a construção de grandes embarcações nessa região já dava sinais claros de declínio após o surgimento do caminhão, reforçadas pelo advento das estradas ligando as micros regiões. Dessa forma os pedidos para novas construções ou reformas de embarcações foram diminuindo e o ofício de Mestre Naval passando a ter menos interessados na arte. De mais de quarenta na época passou a registrar contados seis ou oito. Atualmente registra-se um número considerável de pessoas que dominam a técnica, entretanto, esse número começou a crescer com o surgimento de novos aprendizes que assim o fazem por gostar da arte, admiração ou por questões de ofício mesmo e necessidades. Seja o que for, há o que comemorar.

Altran Feitosa, o “Bolo”: nova leva de mestres

Altran Feitosa, mais conhecido como “Bolo”, é um pescador que reside na cidade de Propriá. Com cinquenta anos de idade ele mantém a disposição e energia de um jovem de vinte anos. Apaixonado pelo Rio São Francisco, o Opará dos índios Caetés e Tupinambás, quase já não pesca e vem dedicando seu tempo à construção de barcos de pesca e canoas de corridas e também se atrevendo a construir outras embarcações de grandes calados que lhe sejam encomendadas. Essas encomendas são, na maioria, lanchas a motor, canoas chamadas de Chatas e outras embarcações. Seja qual for o tipo da embarcação, movidas a motor ou vela, não é dificuldade para ele que aprendeu o ofício de seu pai, o mestre Hugo Feitosa, possuidor da curiosidade e observador da maneira como os mestres lidavam no dia a dia. Já a matemática aplicada na embarcação foi obtida de forma oral. Bolo possui o chamado conhecimento empírico, ou seja, o conhecimento que é adquirido através da experiência ou observação.

Um barco no estaleiro

Atualmente, em um pequeno estaleiro na cidade de Propriá, especificamente na Banca do Peixe, Bolo instalou seu local de trabalho para construção e reparos em embarcações. Ali também fica o porto de vários barcos e canoas de pescarias e de corridas que aportam ou zarpam para diversas regiões do Opará diariamente. O local vem se tornando um ponto de reuniões, debates e ponto de encontro de pessoas. Lá é uma espécie de clube ou associação de pescadores que, de quando em vez, decidem fazer corridas de barcos nos dias de domingo, feriados e comemorações diversas. É ali que são mantidas as histórias orais; os contos e lendas do Rio São Francisco, a reflexão sobre a situação do rio e tudo que se relaciona a ele e povo ribeirinho. Entretanto, um chamativo em especial, é a construção de embarcações por Bolo que atrai curiosos, saudosistas e outros interessados.

Um barco ainda em fase de construção é o novo projeto de Mestre Bolo

Encomendado para ser movido a motor o barco tem cerca de seis metros de cumprimento por um metro e vinte de largura. É considerado de tamanho mediano. Totalmente feito de forma artesanal. Segundo Bolo, suas tábuas são de Louro Amarelo- resistentes e duradouras - , possuirá características para ser veloz e não para o transporte de cargas. “Na hora que você tá fechando o projeto é que se define, com base no pedido do dono, que tipo a embarcação será. Se for para corrida é mais estreito no centro. Se for para carga ele é largo desde a saída na boca – proa -  até o fundo – popa -”, disse Bolo.

Apaixonado por canoas, Bolo é possuidor de duas delas que são para as provas de corrida e pretende fazer mais uma para passear e também outra em miniatura de uma canoas de Tolda, será uma espécie de replica. “Estou planejando fazer uma replica de uma canoa de Tolda. As pessoas chegam aqui e perguntam se ainda existe alguma delas no São Francisco. Dai me veio á ideia de fazer uma delas em miniatura e assim as pessoas poderão ver e até tirar fotos [...]”, afirmou. Para a realização do Projeto ele já tem admiradores e quem queira contribuir para adiante pleitear fundos. Tal projeto trata-se de resgatar um pouco da História e imagem das canoas de toldas que deixaram uma grande contribuição para o desenvolvimento do Baixo São Francisco em uma época de dificuldades tecnológicas. Calcula-se que pode ter existido mais de cem delas em todo Baixo desde a foz do São Francisco até a cidade de Canindé de São Francisco no Alto Sertão de Sergipe. Ambas as margens dos Estados, Alagoas e Sergipe, registravam grande número de embarcações com as canoas de Toldas e as chamadas Chatas de dois panos e os famosos botes. O tráfego de embarcações era intenso o serviço não faltava para os mestres. Hoje a redução do números de embarcações no rio foi reduzida, as velas substituídas por motores e o ofício de mestre entrou em declínio.

O desafio

Por ser filho do rio, pescador e viver estritamente do que ele pode oferecer, Mestre Bolo decidiu enveredar pelo ofício. “No começo foi um pouco difícil. Chegou uma encomenda de um barco grande em Aracaju e eu e meu irmão, Eliano Feitosa, topamos o desafio. Quando terminamos o trabalho e vimos que ele foi aprovado decidimos continuar e outros pedidos foram aparecendo. Dominamos a técnica e hoje não temos medo de pegar nenhum projeto para desenvolver.”, disse Bolo.

Dificuldades de novos aprendizes

No momento atual vive-se a era da tecnologia. Cada dia mais somos dependentes dela. A tecnologia móvel facilita a vida com um clique na palma da mão. Os jovens por suas vez são os que mais aderem à elas buscando percorrer outros caminhos. É nessa linha de pensamento que Mestre Bolo relata: “Hoje os jovens não querem saber de aprender o ofício. O negócio é celular conectado na internet [...].”. Bolo tem razão ao expressar seu pensamento em relação à juventude e nesse contexto iremos observar que, se antes os motivos para a continuidade do oficio eram a escassez de trabalho, hoje ela passa ser cultural e intelectual, ou seja, o estado de “ebulição” do mundo em constantes mudanças imprimem novas visões de mundo, oferecendo oportunidades e caminhos a seguir e a falta de investimento no espaço da Cultura. Traduzindo seria: nenhum jovem tem interesse de manusear um serrote ou plaina se um celular na mão pode lhe condicionar à novas oportunidades e melhor condições de vida. É um processo natural. O que fazer? É nesse campo que entra em ação a Cultura, a História, Arqueologia e Políticas Públicas. O interessante seria manter viva, através de incentivos culturais, a tradição e conhecimento de como eram construídas as embarcações. Seria um resgate histórico e cultural e assim manter viva essa parte da identidade do povo do Baixo São Francisco. Mestre Bolo vem fazendo isso sem saber.

Mestres ainda vivos

A muito custo a tradição vem se mantendo e tem surgido novos mestres como Bolo. São eles: na cidade de Neópolis/SE o Mestre Pateta, mais de setenta anos de idade e Mestre Santo; Penedo/AL o Mestre Lu; Piaçabuçu/AL o Mestre Aldair, Zé dos Mandins e Lula; Ilha das Flores/SE o Mestre Mané dos Santos; Traipu/AL o Mestre Dida, Luiz Carlos e Erpídio – já não mais exerce o ofício devido à idade -. Em Escurial/SE o Mestre Zé da Laguna; Bom Jardim/SE o Mestre Edízio e em Pão de Açúcar/AL o Mestre Aurélio.

Mestre Cornélio: o mais velho da turma

Assenta-se, em especial, no Alto Sertão de Sergipe, o Mestre Cornélio que é o mais antigo vivendo na idade dos seus quase noventa anos e cujo trajetória foi um dos que mostrou sua habilidade no “Rio de Cima” construindo diversas embarcações. Uma de suas obras encontra-se ainda viva enfrentando o tempo nas proximidades do estaleiro de Mestre Bolo, a conhecida canoa de tolda Itabajara de Chico de Guilherme que já não mais navega e está em terra terminando os seus dias de glória nas águas do antigo Opará.


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