Renda irlandesa de Divina Pastora reforça identidade e papel social das mulheres
Pesquisa evidencia tradição centenária como expressão de resistência cultural, inclusão social e preservação da memória coletiva
A renda irlandesa produzida em Divina Pastora, município sergipano reconhecido nacionalmente por essa prática tradicional, configura um importante símbolo da identidade local, do fortalecimento feminino e da continuidade cultural transmitida entre gerações. Desenvolvida a partir da técnica do lacê, que consiste na junção precisa de figuras bordadas com linha, a renda foi introduzida no Brasil por freiras europeias, adaptando-se ao território e às características culturais sem perder sua originalidade. Hoje, permanece como fonte significativa de desenvolvimento social e econômico para a comunidade.
O interesse em compreender a produção e a preservação dessa renda motivou a mestra em Direitos Humanos, Letícia Dantas Sobral, integrante do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Tiradentes (Unit), a dedicar sua dissertação ao tema, intitulada As rendeiras de Divina Pastora-SE, culturas populares e etnodesenvolvimento. Dessa investigação surgiu também um projeto de Iniciação Científica desenvolvido pela estudante de Direito Evilly Gabriela Mendonça Oliveira, que analisou os impactos do reconhecimento patrimonial da renda na construção identitária das artesãs.
Tradição, memória e pertencimento
Ao iniciar os estudos, Evilly relata ter sido imediatamente envolvida pela história do ofício. Ela explica que compreender a complexidade do trabalho manual ampliou sua visão sobre o significado sociocultural presente na atuação das rendeiras.
A pesquisadora destaca que a técnica do lacê, fundamento da renda irlandesa, expressa a singularidade do artesanato produzido em Divina Pastora. “Mesmo após tanto tempo, esse saber mantém sua essência e continua despertando sentimento de pertencimento, fortalecendo a identidade das artesãs enquanto grupo tradicional”, pontua.
Evilly observa ainda que essa prática, inicialmente restrita ao ambiente doméstico, passou a assumir relevância econômica e cultural, reunindo mulheres e fortalecendo laços comunitários. Para ela, esse percurso demonstra como o artesanato se consolidou como prática social que preserva memória, história e autonomia. “É possível identificar como um conhecimento antes associado ao lar ganhou espaço central na renda familiar e, sobretudo, contribuiu para consolidar a identidade coletiva dessas mulheres”, avalia.
Essa percepção reforça o papel da renda irlandesa como símbolo de resistência cultural. Para Evilly, considerá-la apenas um produto manual não contempla a dimensão simbólica responsável por sua permanência. “Desejo que as pessoas entendam sua relevância como expressão de identidade e autonomia para as comunidades tradicionais de Sergipe”, acrescenta.
Reconhecimento institucional
A pesquisa de Evilly se concentrou na revisão de literatura e no exame de documentos, incluindo o processo que oficializou a renda irlandesa como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Mesmo sem contato direto com as rendeiras, a estudante analisou registros oficiais contendo relatos das artesãs, além de estudos acadêmicos produzidos anteriormente. Para ela, o reconhecimento institucional valida o valor do saber tradicional, contribuindo para sua proteção e continuidade. “Pesquisas desse tipo estimulam ações públicas de preservação e ajudam a garantir a transmissão desse conhecimento às próximas gerações”, explica.
Evilly também enfatiza que o estudo contribui para o fortalecimento da atuação feminina, ao evidenciar o papel das rendeiras como guardiãs de uma memória coletiva. “A renda irlandesa ultrapassa a dimensão técnica: representa história, construção identitária e resistência compartilhada ao longo de séculos. Reconhecê-la é reconhecer a cultura sergipana e as mulheres que mantêm vivo esse legado”, afirma.
Comunidade tradicional e protagonismo feminino
Em sua dissertação, Letícia Sobral buscou compreender como a prática artesanal contribui para afirmar o reconhecimento das rendeiras enquanto comunidade tradicional. Segundo ela, essa atividade envolve elementos como memória, identidade comum e senso de pertencimento.
A pesquisadora destaca que a renda irlandesa permanece como manifestação viva de uma cultura enraizada no cotidiano dessas mulheres, sustentada por suas relações sociais. “Esse fazer reafirma o valor do coletivo e fortalece a autoestima das artesãs, que se reconhecem como protagonistas na preservação cultural”, explica.
Letícia também chama atenção para a articulação entre renda, gênero e etnodesenvolvimento. Ao dialogar com perspectivas como o ecofeminismo, ela indica que a produção artesanal ultrapassa o aspecto financeiro, constituindo espaço de resistência e afirmação. A estruturação coletiva, sobretudo por meio da Associação das Rendeiras (ASDEREN), fortalece esse movimento ao ampliar o reconhecimento público e dar visibilidade ao trabalho feminino.
Para a pesquisadora, esse processo gera impactos positivos tanto na comunidade quanto na academia. Ela afirma que o estudo aprofunda discussões sobre patrimônio imaterial e direitos humanos, além de estimular que as próprias rendeiras se reconheçam como agentes de transformação local. “Compreender esse saber-fazer como manifestação de resistência e autonomia permite que as artesãs se percebam autoras de suas trajetórias”, afirma.
Pesquisa, formação e impacto social
A participação de Evilly no projeto de Iniciação Científica ampliou seu interesse pela pesquisa. Ela relata que a escassez de estudos específicos exigiu maior flexibilidade na investigação, fortalecendo suas habilidades de pesquisa. “Foi necessário me adaptar várias vezes, porque havia poucos estudos sobre o tema. Com isso, aperfeiçoei minha escrita e aprofundei meu olhar sobre cultura e direitos humanos”, conta.
A estudante destaca ainda o apoio recebido da universidade, especialmente do Laboratório de Direitos Humanos (LABDH). “A Unit oferece um espaço para quem deseja desenvolver pesquisas. No meu caso, o LABDH se tornou uma ótima oportunidade para conhecer novas pessoas e trocar experiências”, relata.
Evilly apresentou seus resultados em eventos acadêmicos da instituição, sob orientação do professor Dr. Dimas Duarte, e trabalhou em parceria direta com a mestranda Letícia Sobral.
Além da formação acadêmica, a experiência proporcionou amadurecimento pessoal. Para Letícia, o envolvimento de estudantes em projetos desse tipo proporciona aprendizado que ultrapassa o âmbito teórico. “Vivenciar os modos de vida e desafios das rendeiras amplia a compreensão sobre direitos culturais, diversidade e sustentabilidade. Essa experiência incentiva o desenvolvimento da empatia, pensamento crítico e compromisso social”, observa.
Tradição como futuro
A pesquisa sobre a renda irlandesa de Divina Pastora torna-se referência para outras localidades sergipanas que preservam saberes tradicionais. “O estudo demonstra que reconhecer e valorizar práticas culturais é caminho fundamental para o fortalecimento da identidade regional, para a promoção da economia criativa e para a formulação de políticas culturais. Iniciativas assim inspiram novas ações de salvaguarda e apoio às comunidades detentoras de saberes, reforçando que o desenvolvimento sustentável acontece quando as pessoas e suas tradições são valorizadas”, afirma Letícia.
A pesquisadora destaca ainda o papel do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Unit, que incentiva pesquisas voltadas a temas como cultura, identidade e etnodesenvolvimento. “Ao apoiar estudos direcionados às comunidades tradicionais e aos saberes locais, o programa contribui para a construção de pesquisas aplicadas, que ultrapassam o âmbito acadêmico e oferecem resultados concretos para a sociedade. Essa atuação reforça o compromisso da Unit com a inclusão, a valorização cultural e o desenvolvimento sustentável”, conclui.