Ciclo de Debates sobre Direitos Humanos na América Latina discute memória e justiça na ditadura na Argentina
Evento semestral promove reflexões sobre as transições democráticas na região; nesta edição, o tema central foi o processo de redemocratização na Argentina, com palestra da professora italiana Marzia Rosti

Dar destaque às violações dos direitos humanos ocorridas durante os regimes autoritários na América Latina e estimular uma análise crítica sobre os impactos deixados por esses períodos no cenário atual. Essa é a proposta principal do Ciclo de Debates sobre Direitos Humanos na América Latina, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (PPGD) da Universidade Tiradentes (Unit), que acontece a cada semestre desde 2018. Realizado em três encontros por semestre, o ciclo já se firmou como um espaço para o compartilhamento científico e uma discussão aprofundada acerca dos direitos humanos.
Na edição desta sexta-feira, 11, a convidada foi a professora italiana Marzia Rosti, da Universidade de Milão, que possui amplo reconhecimento por sua expertise em ditaduras e processos de transição democrática na América Latina, com ênfase na Argentina. Sua conferência, intitulada “Memória, Verdade e Justiça na Ditadura Cívico-Militar e suas Vítimas na Argentina”, trouxe uma reflexão detalhada sobre os obstáculos enfrentados pelo país para restaurar a democracia e garantir justiça às vítimas do regime militar.
Reflexões profundas e conexões com os dias atuais
Em sua fala, Rosti relembrou momentos marcantes da redemocratização argentina, como a eleição de Raúl Alfonsín em 1983, considerada o marco do retorno ao regime democrático. Ela destacou simbolismos adotados por Alfonsín, como tomar posse em 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, e discursar no Cabildo – um prédio histórico ligado aos movimentos de independência – em vez da tradicional sacada da Casa Rosada. “Esses gestos demonstraram claramente uma ruptura com o passado autoritário e uma reafirmação do compromisso com a democracia”, explicou.
Outro ponto ressaltado foi a criação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), responsável por investigar os abusos cometidos durante a ditadura. O trabalho da comissão resultou no relatório “Nunca Más”, que documentou a existência de mais de 360 centros de detenção clandestinos e cerca de 8.960 desaparecidos. “Esse relatório foi inédito na América Latina e serviu de referência para outros países da região, como o Brasil”, apontou Rosti.
Contudo, a busca por justiça foi marcada por dificuldades. A professora relembrou as leis de Ponto Final e Obediência Devida, que restringiram o julgamento de militares, além dos indultos concedidos posteriormente. “No governo de Carlos Menem, esse cenário de impunidade se agravou, com o perdão presidencial a militares e também a membros de grupos armados. Esse ciclo só começou a ser revertido a partir de 2007, quando essas medidas foram revogadas e os processos judiciais retomados”, afirmou.
Importância do ciclo de debates
O professor Fran Espinoza, coordenador do ciclo e docente do PPGD, destaca que o evento contribui para que os estudantes compreendam melhor os regimes autoritários na América Latina e suas implicações para os direitos humanos. “Nós investigamos as ditaduras sob um ponto de vista histórico, analisando traços comuns entre os diferentes regimes da região. Observamos como os militares replicavam estratégias entre si, como o uso das Forças Armadas, o controle de meios de comunicação como rádio e TV e até o futebol, utilizado como ferramenta de distração da comunidade internacional”, explicou.
Além de ampliar o conhecimento, os encontros também provocam reflexões críticas sobre o passado e suas possíveis conexões com o presente. “É um tema extremamente relevante, especialmente dentro da disciplina que estamos ministrando atualmente no doutorado em Direitos Humanos. Os próprios alunos começam a notar semelhanças com o cenário atual, identificando sinais de repetição da história com a ascensão de governos autoritários, sejam eles de esquerda ou de direita”, complementou.
Aproximação entre teoria, pesquisa e prática profissional
As discussões ecoaram entre os participantes, como no caso do doutorando Thyerri Cruz, cuja pesquisa de doutorado trata das políticas de segurança pública influenciadas por regimes autoritários. “O ciclo de debates é uma ferramenta muito rica, pois traz contribuições valiosas para nossas pesquisas. Permite o contato com perspectivas internacionais e com pesquisadores que, apesar de atuarem em seus países, apresentam contextos semelhantes ao do Brasil. Essa troca agrega muito às nossas investigações individuais e, como o próprio nome do evento sugere, promove discussões de alto nível”, comentou.
Outro participante, Wadton Macilak, também aluno do doutorado em Direitos Humanos, ressaltou a utilidade do conteúdo para sua atuação profissional. “Sou controlador-geral de um município baiano chamado Jaguarari, localizado a cerca de 500 km da capital, no extremo norte do estado. Nessa função, trabalho diretamente com políticas públicas, inclusive voltadas aos direitos humanos. Esse tipo de conhecimento é extremamente útil, pois poderei aplicar o que aprendi no município e contribuir para o aprimoramento das ações locais”, afirmou.
Além dos pós-graduandos, o ciclo também desperta o interesse de alunos de outras áreas, como João Victor Moreira, estudante do sétimo período de Psicologia. “Sempre me interessei pelo tema dos direitos humanos, especialmente pela sua ligação com a política. Participar de um debate sobre algo que já gosto é muito gratificante. E não apenas no contexto do Brasil, mas observando também a história mundial, como o caso argentino. Sem contar a oportunidade de estar diante de uma professora tão reconhecida. É realmente enriquecedor”, destacou.