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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 20 de dezembro de 2015

A cadela do padre Fonsequinha :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Meninos, foi um rebuliço! Pensem os estimados leitores num rebuliço das seiscentas...! Mexeu com a cidade inteira. E com as redondezas. Povoados e cidades vizinhas. Afinal, era o padre Fonsequinha, querido e respeitado por todos os homens e mulheres de boa vontade. E também respeitado por quem era de má vontade. O padre Fonsequinha? Além de ser um presbítero renomado no clero diocesano, era um sujeito de peia. Quem era besta tirar lorota com ele? Houve um tempo em que certo vigário, três antes dele, naquela Paróquia, passou por muitos vexames por conta das más línguas de beatas e políticos, que lhe infernizaram a vida, levando um magote de conversa fiada ao senhor Bispo, que, coitado, meio cansado e indolente, caiu no conversê daqueles tipos e mudou o pobre padre Virgílio de lugar, mandando-o para a Paróquia mais distante. Um castigo imerecido. Todavia, por lá ele encontrou guarida, sossego e paz. E ali ele veio a entregar a alma a Deus, uns vinte anos depois, quando já beirava os noventa janeiros. Que Deus o tenha na sua mansão de vida eterna! Língua de gente? Às vezes, é tição aceso, urtiga endiabrada, cansanção do brabo.     
Volto ao padre Fonsequinha. Aliás, ele quase chegou a bispo. Recusou. E apesar de certas e aleivosas intrigas de irmãos no sacerdócio, ou seja, de alguns deles, o velho Fonsequinha teria, sim, alcançado o episcopado em face de uma segunda comunicação da Nunciatura Apostólica. Recusou de novo. Mas, ele nunca se incomodou com o fato de não ter o báculo nas mãos e a mitra na cabeça. Afinal, como ele dizia e repetia, nascera para ser um pastor provinciano. O que lhe fez ficar uma arara, uma tiririca foi o modo de agir sorrateiro, inditoso de alguns confrades, que o queriam longe das faias episcopais. E ele os desancou. Disse-lhes um bocado de desaforo. Porém, como ele tinha o pavio curto, por isso mesmo, o fogo logo apagava. Pavio curto queimava fácil e facilmente se consumia. Pronto. Tudo voltou às boas, embora os seus detratores pisassem sempre macio com um pé na frente e outro atrás, quando se tratava de qualquer assunto ligado ao padre Fonsequinha, que não tinha papas na língua. “Minha santa mãe dizia que eu não queimei a língua com papa, quando era bebê”, costumava proclamar para Deus e o mundo inteiro ouvir. Tinha rompantes, mas era um homem de bom coração. Porém, vir a ser bispo? Nem pensar.     
O velho padre tinha uma cadela dessas de raça miúda, branquinha como flocos de algodão. Era uma novidade ali na cidade. O único canino da raça poodle. Na rua em que o padre morava, a vizinhança delirava com Mimi. Esse o nome da cadela de estimação do padre Fonsequinha. Pois não é que, um dia, Mimi se soverteu no mundo? Sumiu sem deixar rastro. Alguém teria surrupiado Mimi, enquanto ela estava na janela, observando as pessoas e o mundo? Alzira, a serviçal da casa paroquial, viu Mimi pela última vez, na janela, lá pelas nove horas da manhã, pouco mais ou menos, enquanto varria a ampla sala de estar, onde o vigário recebia as pessoas, ricas ou pobres. Quando o padre retornou para casa, pouco depois do meio-dia, após visitar alguns enfermos, procurou por Mimi. Qual nada! Nem sinal. Nem sombra da cadelinha da cor do algodão. Foi um vexame. Foi um corre-corre. Um procura daqui e dali. Nada.     
Os vizinhos se alvoroçaram. Meia cidade foi revolvida. O sacristão Dieguinho de dona Fausta berrou no aparelho de alto-falante da igreja: “Atenção, atenção todos. A cachorrinha Mimi do padre Fonsequinha sumiu. Quem a encontrar, será bem recompensado. E se alguém carregou a cadelinha do padre, ele disse que tal pessoa desalmada vai arder no fogo do inferno”. O sacristão disse essa barbaridade por conta própria. Depois, o padre o repreendeu. Bem feito.     
Até a polícia foi mobilizada para encontrar Mimi. A tarde foi perdida. Vasculharam-se ruas e becos. Nada. Ninguém sabia de nada. Ninguém tinha uma pista. Mimi sumiu como que por encanto, para o desespero de Alzira, que se sentiu culpada pelo sumiço da cadela. O padre tentou acalmá-la, mas ela não teve consolo. Chorou a tarde inteira. Chorou a noite inteira. E amanheceu chorando. Cuidou no desjejum do padre ainda derramando lágrimas. Até parecia que os seus olhos eram duas torneiras abertas. De Mimi, nenhuma notícia, nenhum rastro.     
O tempo passou, e nada. O padre Fonsequinha, todavia, não perdia a esperança de reaver a sua preciosa Mimi. “Um dia, ela voltará”, dizia. Bem. Se Mimi saiu para um dia voltar, o passeio foi longo. Entrou semana e saiu semana. Ninguém sabia nada sobre o paradeiro de Mimi. Dois meses se passaram. Nada. Nadica de nada. Às escondidas, Alzira fez promessas, rezou ladainhas. Ela ainda se sentia culpada. Não tivera o devido cuidado com Mimi. Não fora vigilante. O padre tinha um coração maior do que o mundo, por isso a perdoara. Ela assim pensava. Quanto ao padre, esperava pela ocorrência de um verdadeiro milagre: a volta de Mimi, passados dois meses. Ninguém acreditava que a cadelinha voltasse à casa do padre. Só ele não perdia a esperança. Afinal, era padre, tinha uma fé sólida. Assim diziam os paroquianos. Os que o conheciam mais amiúde.     
Naquele meio tempo, bateu às portas da cidade as primeiras chuvas do inverno. O povo estava carente de boas chuvas. Os dois últimos invernos foram fracos. Lavoura pouca, a maior parte perdida por falta de chuva no momento da floração do feijão e no tempo das bonecas de milho se encher de caroços. Tinham sido invernos vasqueiros de chuvinhas sem vergonhas. Invernos que demoraram a chegar e pouco custaram para ir-se embora. Àquela altura, chovia há quatro dias. Pancadas de chuva das boas. Prevenido, o padre Fonsequinha tinha comprado três carroçadas de lenha. Lenha de candeia e pirunga, tirada na Caiçara. Alzira não reclamaria pela falta de lenha, nem que a lenha era fumaçenta e fazedora de muita cinza. Candeia e pirunga? Madeiras boas de fogo e brasa.     
Era quase a hora da ave-maria. O padre preparava-se para ir à Igreja. Enquanto procurava o breviário, na sala de leitura, ouviu um grunhido na porta. Um latido. Outro. E mais outros. Latidos mais do que conhecidos. Correu à porta. Abriu-a. E lá estavam Mimi e três filhotes. Parecidos com ela. Nunca se soube por onde Mimi andara. O certo foi que cruzara com um cãozinho poodle. A prova estava nos filhotes. Não se conhecia outro poodle na cidade, além de Mimi. Mistério. Mistério que nunca seria desvendado. Verificou-se, depois, que os filhotes de Mimi eram três cadelinhas. Elas se chamariam Lalá, Lili e Loló. As cadelinhas latiam quase sem parar. Por isso, a vizinhança linguaruda denominou-as de Bila, Mila e Sila, igualzinho às irmãs costureiras e solteironas, do Oco do Pau, que, sem piedade, falavam de todo mundo e queimavam pacotes de velas aos pés da imagem de Santo Expedito. Elas só não eram bestas para falar do padre Fonsequinha. Com ele, as más línguas tinham limites.
Dizem boas línguas que o padre Fonsequinha ainda vive. Onde? Não sei.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 20 de dezembro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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