Aracaju (SE), 21 de novembro de 2024
POR: (*) José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 14 de março de 2015

Juiz não é Deus?

Parte da imprensa e das redes sociais entrou em polvorosa. Uma agente de trânsito, num ano qualquer e num lugar qualquer, disse que um juiz não era Deus. Que servidora pública mais insensata! Ela não tinha o direito de dizer isso. Essa moça agiu indelicadamente. Deus é Onipotente e Onisciente. Logo, a agente de trânsito não soube reconhecer que estava diante de Deus. Embora de um “deus” que se apresentava dirigindo um veículo sem a devida habilitação e sem as placas policiais. Essas identificações são exigidas de qualquer um, na forma do que dispõem as leis do trânsito. Sim, mas não exigível no caso de Deus. Afinal, Deus é Deus. Como, ó insensata servidora pública, exigir quaisquer documentos de Deus numa blitz de trânsito, ou fosse lá onde fosse? Mais uma vez eu asseguro: faltou bom senso à zelosa agente de trânsito. Primeiro, ela errou em exigir a documentação “divina”. Depois, ela errou em não reconhecer que estava diante de um “deus” que sabe que tudo pode. Ou melhor, que pensa que tudo pode.

É comum no cotidiano deste tão rico, mas, ao mesmo tempo, e em parte, tão paupérrimo Brasil (paupérrimo em ética, por exemplo), a gente ouvir dizer que “há juízes que pensam que são deuses; e há outros que têm certeza de que o são”. Tudo bem. Todavia, há bons juízes. E não são poucos. Ao contrário, estes são a maioria. Estes são os que jamais se sentiram “deuses”. Sentem-se exatamente o que são de verdade: autoridades a serviço do povo. Do povo do qual, retoricamente ou não, todo o poder político-jurídico emana. Ao menos, é como está escrito na Constituição Federal.
   
A agente de trânsito em foco pecou feio. Sim, não foi só um erro cometido no exercício legal de sua função pública. Foi um pecado contra um “deus”. E o pecado reside exatamente no fato de ter-lhe negado a divindade da qual ele se sentia revestido. Aquele magistrado que, segundo a imprensa apurou mais tarde, depois que veio a lume uma condenação indenizatória que agora pesa sobre a agente de trânsito, já tinha cometido outros deslizes no trânsito.
   
A agente de trânsito ingressou com uma ação contra o... Êpa! O bicho pegou. Devo dizer contra o “juiz-deus” ou o “deus-juiz”? Bem, uma ação contra o infrator. E, surpreendentemente, o “mal” virou contra a “feiticeira”, para usar um jargão popularíssimo. Eis que a autora da ação vê-se, agora, condenada a indenizar o infrator, que, aliás, lhe dera voz de prisão e exigira que ela fosse algemada. A condenada recorreu. Perdeu o primeiro recurso. Ainda há outros recursos a serem apresentados. E a condenada os usará. É seu direito legítimo. Como disse um velho moleiro na capital da Prússia: “Ainda há juízes em Berlin”. Ou seja, ainda há juízes em Brasília, no STJ, no STF e no CNJ. É a esperança da moça. E a sua confiança. A minha também. Aliás, segundo a imprensa noticiou, no dia 10, o presidente do STF afirmara em Florianópolis, sem emitir qualquer juízo de valor sobre o caso, que o juiz, naquela situação, era um cidadão comum. E era mesmo. Só ele não sabia disso.
   
A servidora pública foi condenada civilmente porque “desacatou” (valha-me Deus, o Verdadeiro!) a autoridade do magistrado, que se encontrava em flagrante ato legalmente reprovável: sem habilitação e sem as placas do veículo que dirigia. Só isso. Como se diz no “interiorzão” de meu Deus (de novo, o Único e Verdadeiro!), isso é meramente uma “tuliça”. Coisa de importância nenhuma.
   
Eu sou radicalmente contra a agente de trânsito insensata. Onde ela estava com a santa cabeçinha, quando disse, do alto da digna autoridade de quem faz o correto, de quem age dentro dos parâmetros legais, que o juiz não era Deus? Ela desacatou a autoridade. Só assim ela aprendeu que juiz é juiz, e, claro, aquele flagrado por ela era também “deus”. Ele poderia estar fora dos seus afazeres judicantes. Ele poderia estar dirigindo de modo absolutamente errado, como estava mesmo, mas, ainda assim, deveria ser respeitado como autoridade que era. Autoridade judicante é autoridade até debaixo d’água. Errada ou não. Aquela moça não entendeu isso. Portando, está “sofrendo” uma penalidade absurda. Vergonhosa. Contudo, o juiz infrator de trânsito foi desrespeitado por ela. A agente de trânsito falou com desdém, com ironia, que ele não era Deus. Mas ele pensava que era. E ainda teve colegas seus que lhe deram asas, conferindo-lhe direito a uma indenização. Por enquanto. Que não lhe deem mais asas os seus eminentes pares nas instâncias superiores. Que estes encarnem a personificação dos juízes nos quais confiava o velho moleiro alemão.
   
Há muitos anos, uns 15, mais ou menos, um soldado da Polícia Militar da Bahia flagrou um motorista conduzindo o carro de placa preta da presidência do Tribunal de Justiça, em pleno domingo de sol, na altura do Farol da Barra, em Salvador, na contramão. O condutor era um juiz. Filho do então presidente do Tribunal. Confusão. Sobrou para o digno e atuante policial. Na segunda-feira, o comandante da Polícia Militar foi instado pelo governador do Estado a conduzir o soldado ao presidente do Tribunal, a fim de apresentar um pedido formal de desculpas. E, provavelmente, jurar de pés juntos que nunca mais voltaria a fazer aquilo, ou seja, deter o douto filho do presidente do Tribunal, quando ele voltasse a dirigir na contramão o carro oficial da Presidência do Tribunal, que era “ocupada por papai”, e cujo veículo somente deveria ser conduzido pelo motorista oficial, eis que essa era a função de quem exercia tal cargo.
   
Logo, a agente de trânsito não está sozinha. E mais do que isso, com ela estão milhões de brasileiros, que se orgulham dos seus bons magistrados, mas abominam aqueles poucos (e espero que sejam poucos mesmo!) que, embora se achando “deuses”, se sintam feridos quando alguém apenas declara o que eles pensam e têm medo de declarar. E abominam aqueles que erram como cidadãos comuns e querem se safar sob o manto da autoridade que legalmente ostentam. Mas, autoridade em erro, não passa de autoridade em erro.
   
A essa servidora pública condenada, os meus cumprimentos efusivos, a minha solidariedade. Aos bons magistrados brasileiros, alguns dos quais foram meus alunos, o meu apelo para que continuem retos e equânimes na sua vida judicante e na vida civil. E aos que cometem infrações no trânsito, ou quaisquer outras, o meu repúdio.


Publicado no Jornal da Cidade, edição de 16 e 17 de novembro de 2014. Publicação neste site autorizada pelo autor.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

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