Pano de’nágua
Segunda-feira é um dia preguiçoso. Ou melhor, é um dia que dá preguiça em muita gente. Afinal, nenhum dia poderia ser dado a espreguiçamentos. Afora o bicho chamado preguiça, lento demais da conta, quem tem preguiça é o bicho homem, enquanto espécie. Embora digam por aí que tem animais irracionais também dados a uma vadiança. O cachorro Pituca, vira-lata rabugento de Pedro de Clarinha de Osório Gato, era desse tipo preguiçoso. E imaginem os leitores e as leitoras que o danado era tido como cão de caça. Valei-me! O bicho só vivia deitado, deixando escapar um magote de pulgas e soltando bufas pra danar. Para acompanhar o dono numa caçada de preás, quando ainda se podia fazer isso, ou seja, quando inadvertidamente se matava à larga os bichinhos do mato, era um Deus nos acuda. Pituca era do tipo que nem servia para rodopiar atrás do próprio rabo. “Fio” da gota molenga! Mas, na hora de bater para o bucho uma tigela de estanho cheinha de café com farinha, que sempre foi comidinha de cachorro de pobre, ele era ativo como só vendo. Comia e deitava. Coçava as pulgas e bufava. Um horror! Afora isso, preguiçoso mesmo é o bicho homem. Isto é, alguns sujeitos e algumas sujeitas o são. Ah, segunda-feira, dia mais pachorrento...! Dia que nem deveria existir no semanário de atividades. Então, a semana começaria na terça-feira? Daria no mesmo.
O primeiro dia de batente, para quem é do batente, é ruinzinho pra danar. E se o sujeito é dado a tomar todas no domingo, de ir, por exemplo, à praia de Atalaia, quem é de Aracaju, empanturrar-se com não sei quantos caranguejos, entupindo o casco com vinagrete, para dar aquela chupada, que faz barulho, aí então a segunda-feira vira um suplício. Deve ter até quem, ao acordar na segunda-feira, às vezes cutucado pela madame, diga ou pense em dizer: “Pai, afasta de mim este cálice”. E aqui, claro, eu não cometo nenhuma heresia, nenhum sacrilégio ao rememorar a frase angustiante do Verbo Encarnado, naquele momento, talvez, tormentoso, em que a humanidade do Filho apelou para a misericórdia do Pai, para, a seguir, entregar-se por completo à salvação de todos nós, ao proferir: “Seja feita a tua, e não a minha vontade”.
Segunda-feira. 17 de novembro de 2014. Acabei de chegar de viagem. Depois de uma semana inteira em Brasília (Vôte! Três vezes vôte!), em intermináveis reuniões, fui assistir ao meu Flamengo escapar de vez do rebaixamento, para, assim, continuar, ao menos por enquanto, como o único grande clube de futebol do Rio de Janeiro a não descer os degraus com destino à “segundona”. Tenho que dar uma batidinha na madeira. Batidinha uma ova! Dei foi uma “batidona”! Pra lá, azar... Cheguei à sede de uma entidade pública federal e fiquei, numa fila, ouvindo as pessoas lorotando enquanto cada uma aguardava a vez de ser atendida. Conversa daqui, conversa dali, e eis que um sujeito vestindo a farda de uma empresa de terceirização de mão de obra, dialogava com outro da mesma empresa, que vestia a mesma farda. Conversa animada de quem estava, no começo da tarde, ainda tentando se acostumar com aquela segunda-feira. Depois de frases e risos, um indagou ao outro: “Quando será que a firma vai dar pra gente uma camisa decente? Essa parece que foi comprada na sulanca”. E o outro: “Essa firma que t’aí? Nunca que ela vai dar uma coisa que preste!”.
Fiquei pensando, e quase o fiz em voz alta: “A terceirização de mão de obra não é de toda má, na Administração Pública, mas se os gestores não tomarem cuidado, recebem cada bucha, cada furada! E os empregados também”. No momento lembrei-me de vários casos de algumas empresas desse tipo de prestação de serviços, que acabaram “quebrando”, deixaram os empregados a ver navios e a Administração Pública contratante com encargos dobrados. Responsabilidade solidária.
Mas, tornando aos dois sujeitos, que continuavam em animada conversa vespertina, o que fizera a indagação comentou: “O motorista Piaba disse que esse tecido da camisa parece pano d’nágua”. E o outro: “E que cabrunco é pano d’nágua?”. Ao que o interlocutor respondeu: “E eu lá sei o que é pano d’nágua!”. Os dois gargalharam. Outras pessoas na fila também sorriram, principalmente uma senhora pra lá de sexagenária. Esta riu às escâncaras. Era uma mulher simples do povo, dessas que, achando graça em algo, não têm pejo de lascar uma estrepitosa gargalhada, que tanto deve lhes fazer bem, e que tanto, também, são censuradas por certas pessoas que parecem viver de mal com a vida. Ah, como soa bem uma sonora gargalhada, dessas de dobrar e redobrar o riso, num fôlego só!
Aquela senhora mais do que risonha e que estava logo atrás de um dos sujeitos, que vestiam camisas do tal pano, explicou: “Com licença, meus filhos, o cara lá quis dizer que a camisa de vocês é parecida como pano de anágua. Vocês são jovens, mas devem saber o que é, ou o que era uma anágua, não é não?” E tornou a gargalhar. Aí ninguém se conteve, nem mesmo uma patricinha de bermuda mais do que justa e curta, deixando à mostra mais de um palmo de coxas, e blusinha azul do tipo fiapinho de pano, que, até então, estava compenetrada, completamente alheia ao mundo, pois teclava com sofreguidão no smartphone cor de rosa, entregue aos prazeres virtuais do “zap-zap” (whatsapp), essa endiabrada febre maculosa virtual, que é mais contagiosa do que a gripe aviária ou o ebola.
Pois era. Era, sim, pano de anágua a que o tal Piaba se referiu, ao comparar o pano ralo das camisas dos dois sujeitos. “Pano d’nágua!”. Ah, como eu adoro esse linguajar coloquial, gostoso e espontâneo do povo! A língua falada, errada ou não, tem lá os seus encantos, quando é a língua genuína do povo, com sotaques e falares tão diferentes, espalhados por esse “Brasilzão” de meu Deus, que nem a operação Lava-jato conseguirá passar a limpo. Limpo como anáguas brancas com rendinhas, bicos e babados, passadas no anil, como antigamente faziam as lavadeiras, no açude de Nossa Senhora das Dores, que as espalhavam nos arbustos para quarar, separadas das outras roupas multicoloridas.
“Pano d’nágua...”. Pensando bem, acho que a República brasileira está vestindo um pano d’nágua. Ai de nós!
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 23 e 24 de novembro de 2014. Publicação neste site autorizada pelo autor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
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