A calcinha que deu o que falar
“Fim de mundo. Decerto, fim de mundo”. Estas foram palavras de Pedrinho do Taborda quando soube, inicialmente, do sucedido. Velho carreiro, dono das três melhores juntas de bois da região e do carro de melhor chiado, de melhor cantoria. Ora, dava gosto ver os seis bois encangados, não pelas cangas que os oprimiam, mas pela beleza do sexteto: Melado, Fina Flor, Dengoso, Rojão, Vermelho e Véio Manso. Mais bonitos não podia haver. Mais ativos também não. Pedrinho do Taborda, povoado de nascimento, mas já não mais de residência do carreiro, era pai de cinco filhos, todos eles homens. E disso ele se gabava: “Sou galo de crista vermelha e levantada. Sou galo macheiro. Galo de crista descorada e caída é galo femeiro. Não sou desse tipo”. Politicamente incorreto, dir-se-ia hoje. Sua voz era discriminatória contra as mulheres? Não era isso. Era apenas o seu modo rude de pensar. Tanto era que não se conhecia nas redondezas homem mais zeloso com a sua família, com a sua casa e com a sua mulher. Rude, sim, mas homem de dar o braço a Dona Estelinha nas idas à feira semanal da cidade ou nas ocasiões de missas e de festas religiosas na capela do povoado, quando lá ainda morava, ou nas missas e procissões na igreja matriz. Besteira? Naquele tempo, não era não.
O machismo desalmado dos homens não permitia, normalmente, essa folgança. Poucos homens do interior, dos raquíticos povoados, davam o braço às suas respectivas mulheres, fora de casa. Então, pensar que Pedrinho era discriminador era pensar bobagem. E ninguém está isento de pensar umas bobagens de vez em quando. Mas a ninguém é dado dizer bobagens a vida inteira.
O fato, contudo, que levou Pedrinho do Taborda a pensar no fim do mundo ocorreu na cidade, quando ele já estava em idade avançada e já não tinha mais o seu carro de bois, que eu conheci na minha infância e nas estradas da Caiçara, da Cobra d’Água e do Itaperoá. Deu-se o fato numa tarde prenunciadora de chuva, com vento soprando e levantando poeira nas ruas sem calçamento, ou fazendo rodopiar em pouca ou média altura nacos de papéis, nas ruas pavimentadas. Vez ou outra, formavam-se pequeninos e ligeiros redemoinhos. Pessoas supersticiosas diziam, à época, que o diabo traquinava nos redemoinhos. E até havia quem, diante deles, fechava portas e janelas.
Ah, como eu adoro enrolar os leitores! Todo mundo deve estar esperando que eu fale sobre a calcinha. E eu nem aí até agora.
Naquela tarde, um aglomerado de pessoas, e melhor é dizer logo, de homens, postava-se na calçada da Pensão Comercial. Era dia de campeonato de gamão. Pessoas iam e vinham, passavam em frente aos jogadores e eles não tomavam conhecimento de ninguém. Cinco tabuleiros espalhavam-se na calçada. Além dos jogadores tinha os perus. Perus eram os que peruavam os jogadores, ou seja, assistiam e torciam por uns ou por outros. Concentração total.
Era dezembro. Ainda não tinha caído nenhuma trovoada. Mas os sinais já eram fortes. Uma boa pancada de água era esperada há uns dez ou doze dias. Luciana Maria, filha de Maneca Jurubeba, capitão reformado da Aeronáutica que resolveu retornar à terra natal após o merecido descanso, atravessava a Praça do Comércio, vindo da Prefeitura Municipal, onde trabalhava. Luciana Maria era casada com Fifito de Zélia do Sapé, dono da loja de miudezas “Novo Horizonte”, situada na Rua do Melão. Mulher aprumada, muito bem possuída de apetrechos corporais, espécime morena clara de longos cabelos castanhos, cintura do tipo violão, ancas na medida certa do corpo, rosto mourisco e olhos da cor do mel mais mel que se poderia conhecer. Em suma, uma mulher e tanto. Boa esposa, boa mãe, boa funcionária. Boa de tudo, ao menos assim parecia. Ela tinha nas mãos duas pequenas sacolas. E foi apanhada de supetão. Pobre mulher! Não teve tempo para esboçar defesa. Um vento buliçoso, vadio, traiçoeiro vento de fim de tarde, como que vindo do baixio do açude, não muito longe dali, levantou a saia rodada godê de Luciana Maria, justo quando ela passava em frente à Pensão Comercial.
Tudo bem que foi num átimo. Mas o pano de baixo ficou à vista. Cena igual, ali, não se tinha notícia. Foi, sem dúvida, o primeiro alumbramento daquele tipo, naquele pedaço da cidade, diante daqueles homens. Nem todos viram a calcinha de Luciana Maria. Mas quem disse que viu, garantiu que era de cor vermelha, ou amarela, ou estampada, ou branca, ou preta, ou de listas. Cada um que disse que viu a vestimenta miúda da surpreendida mulher, afirmava de pés juntos que era dessa ou daquela cor. Houve até quem disse que ela estava sem. Sem calcinha, claro. Um sujeito de boca suja andou dizendo que a mulher de Fifito era uma vagabunda porque não usava calçola. Andou dizendo à boca miúda, mas o dito chegou aos ouvidos do marido zeloso. Uma surra de cipó caboclo fez com que o falastrão nunca mais abrisse a boca porca para falar mal de mulher alheia. Uma surra bem dada de cipó caboclo era para deixar marcas inapagáveis. E deixou.
E foi assim que a notícia alcançou os ouvidos de Pedrinho do Taborda, enquanto, naquela mesma tarde, ele pitava o seu cigarrinho de palha, pé duro, de fumo por ele picado e por ele enrolado. Disseram-lhe que uma mulher teria ficado com as partes fracas ao Deus dará, na frente de um magote de homens, no centro da cidade. Uma mulher com as encomendas à mostra no meio da rua era, sim, o fim do mundo. A notícia chegou ao telheiro do velho carreiro de forma completamente distorcida. Disseram-lhe que a mulher tinha levantado a saia, tirado e mostrado o pedaço de pano. “Miséria! Uma sujeita assim num vale uma casca de siri podre!”, ele disse. Quando, porém, ele ficou sabendo, dias depois, do fato nu e cru, como deveras sucedeu, exclamou: “Vento levantando saia de mulher no meio da rua não é assunto que mereça comentário de homem que tem vergonha na beirada do focinho”. E fulminou: “Quem ouve o que diz o Filho de Deus, só toma conta de sua própria vida, o que já tá de bom tamanho”.
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 7 e 8 de dezembro de 2014. Publicação neste site autorizada pelo autor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
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