A dor de Filomeno Casca Grossa :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Ainda não era meia-noite. Todavia, alguns galos apressados já tinham soltado o canto, um aqui, outro ali, mais um acolá. Dizia-se, então: “Galo cantou fora de hora, moça solteira vai-se embora”. Era no tempo em que moças casadoiras eram raptadas pelos respectivos namorados. Eu não sei quem foi que inventou esse negócio de rapto. Coisa do tempo do carrancismo em que as donzelas eram protegidas como joias do mais precioso metal. Ah, menino...! Quando o pai de alguma mocinha não ia com as fuças do namorado, este se fazia de homem de sangue no olho, de cabelos nos buracos da venta e carregava a pretendente. O verbo carregar para mim soava melhor do que raptar. Afinal, eu nunca ouvi ninguém dizer “raptar”, nos meus tempos de menino, lá no subúrbio João Ventura, onde eu nasci, criei-me e ainda vivo com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Bem. Eu estou enrolando os leitores. Mudei o rumo da prosa. Este é um vício antigo que eu carrego comigo. Adoro enrolar os leitores. Principalmente quando eu não tenho nada para dizer. Agora, porém, eu tenho. E vou ao fato, de rota batida. Ê Filomeno de “seu” Anacleto Pinheiro, pai d´égua mais do que arretado, que botou no mundo um sem-número de meninos, entre machos e fêmeas, que, seguramente, se fossem botados em fila, dobravam um quarteirão! Só casamentos, ele assinou papelada de três. Viuvou duas vezes. A terceira esposa o enterrou já adiantado nos anos. E amancebamento foi uma ruma. Filomeno era filho do último casamento. O primeiro de nove irmãos deste último conúbio. Ao todo, registrados, o velho Anacleto deixou trinta e dois filhos e filhas. Os sem registro, eu não sei direito, mas acho que não dava para contar. Afinal, ele foi homem de várias mulheres ao mesmo tempo. Uma perdição! “Um homem de bom gênio, mas atolado no abismo do pecado”, como dizia o Padre Fonsequinha.
Filomeno era vendedor de carne de porco salgada nas feiras de Maruim, aos sábados, Siriri, aos domingos e Dores, às segundas-feiras. Torresmo igual ao que Dona Caçula, mulher de Filomeno, preparava, não tinha. E mais limpos vasilhames de guardar banha, para vender às freguesas, também não se encontravam. Dona Caçula caprichava em tudo. Ter uma mulher daquela era o mesmo que laçar uma estrela numa noite enluarada. Pronto. Ali estava uma prova de moça carregada. “Seu” Vicente de Januário do Catolé nunca olhou com bons olhos para Filomeno. Não que ele não fosse um rapaz trabalhador. Não, senhor! Saibam os estimados leitores que Filomeno, desde cedo, começou a cavar o pão de cada dia, embora pão na mesa da casa de “seu” Anacleto nunca haveria de faltar.
O pai de Dona Caçula tinha cisma era do tipo casca grossa de Filomeno. Sujeito mais bruto. Mais grosso do que o bueiro da passagem do Brejo das Pedreiras, abaixo da saboaria de Chico Costa, que despejava as águas das chuvas, vindas do centro da cidade. Filomeno dava mais coices do que cavalo manhoso. E era do tipo falastrão. Até parecia ter bebido água de chocalho. O ditado de que “filho de peixe, peixinho é”, não valia em se tratando de Filomeno e “seu” Anacleto. O que este tinha de mulherengo, tinha de ser boa gente. Assim era o pai de Filomeno.
Ufa! Desta vez eu fui longe demais. Enrolei demasiadamente. Os leitores devem estar danados comigo. Comecei dizendo que “ainda não era meia-noite”, mas não disse nada do que deveria dizer. Como se trata da edição domingueira deste matutino, os leitores têm tempo de sobra para ler. Acho eu. Pensem os leitores num carinha ousado e petulante. Pensaram? Sim, euzinho aqui. Bem. Enfim, vou ao “finalmente”. Agora eu vou. Também, não tenho mais como enrolar mesmo.
Ainda não era meia-noite. Filomeno deu um berro na cama, quase matando de susto a pobre da Dona Caçula, que acordou atordoada, o coração a ponto de sair pela boca. “Minha Virgem das Dores, o que é isso, home?”. Uma dor repentina dilacerava o ventre de Filomeno. Parecia que uma coisa braba tinha se instalado nas tripas. Melhor seria ter engolido um quilo de soda caustica. Filomeno Casca Grossa enrodilhou-se na cama como cobra cascavel na hora do bote certeiro. Só lhe faltavam os guizos da temível serpente. Gemeu e berrou como se o mundo precisasse despertar naquela hora mortiça. Dez mil estrelas pareciam ter caído do céu.
Um milhão de cavalos galopavam nos intestinos de Casca Grossa. A rotação da Terra estava ao contrário. Aquela era, sem dúvida, a mais maldita das meias-noites. Filomeno sentiu-se caminhar para a morte. Lentamente, mas caminhava. A dor lhe cortava em mil pedaços. Não haveria de ver o sol raiar. Há pouco morrera seu tio Belarmino e sua tia Maria Flor. Haveria de fazer-lhes companhia. Não veria o seu primeiro neto vir ao mundo. A mulher do seu filho Nanando, Ana Cláudia, daria à luz em dois meses. Um homem não deveria morrer sem ser avô. Sem carregar no cangote o rebento do seu rebento. Dona Terezinha, sua mãe, terceira mulher de seu pai, de papel passado e tudo, sempre dizia que meia-noite era a hora em que o diabo se soltava dos portões do inferno, para fazer estripulia mundo afora. Pois parecia que sim.
A dor aumentou. Não haveria morfina no mundo que lhe aplacasse. Era o Dr. Milton quem falava nos efeitos da morfina. Dr. Milton era o médico da cidade. Dos ricos e dos pobres. Um médico que nem no Aracaju tinha melhor. Filomeno nem sabia o que era morfina. Só pela boca do médico. Mas, a morfina do mundo inteiro não bastaria para arrancar a raiz daquela dor cabrunquenta.
Em seus instantes finais, ao avizinhar-se a hora perversa em que bateria a caçoleta, em que a iniludível tocaria em seu pescoço a foice afiada, Filomeno Casca Grossa lembrou-se, nem sabia como aquilo lhe ocorrera naquela hora de agonia, da praga que Maria Pula-Pula lhe rogara, uns dez anos faziam. “Tu, Casca Grossa da gota serena da peste, há de morrer com uma dor de barriga tão grande, que vai obrar uma noite inteira, desfazendo-se em merda. Tu vai morrer desmastriado”. Pois sim. A praga lhe alcançara. Sentiu-se todo obrado. E obrando mais e mais, sem parar. Morreria afogado nas próprias fezes. Boiando no mar fedorento. Atolado até os restantes fios de cabelo da cabeça.
“Filomeno, Filomeno! Ô Filomeno! Acorda home de Deus! Tu tá tresvaliando”. E foi, então, que Filomeno Casca Grossa acordou de verdade. O suor descia-lhe em bicas. Ele arregalou os olhos e, virando-se de lado, perguntou a Dona Caçula: “Eu num tô obrado, não, mulé?”.
Não, não estava não. Fora apenas um pesadelo. Nada mais.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 10 de janeiro de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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