Aracaju (SE), 14 de novembro de 2024
POR: (*) José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 05 de abril de 2015

Pinico de Ouro :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Pinico de Ouro  ::  Por Jos Lima Santana (Foto: Divulgao)

Pinico de Ouro :: Por Jos Lima Santana (Foto: Divulgao)

Quem, em sã consciência, que andejou pras bandas da boca do sertão, e do sertão mesmo, pros lados dos tabuleiros e mais léguas, não se lembra de Pinico de Ouro? Sujeito falador, que xingava todo mundo com ou sem motivo. Era o jeito dele. Todavia, era de fino no trato com quem ele se dava. Tangedor de tropa de burros de carga nos tempos em que caminhão era coisa rara. Um ou outro rodavam pelas estradas de chão batido, poeirão avermelhado levantando no verão. E lama da mesma cor espanando no inverno. Ladeiras difíceis de subir. Mas, nenhuma se comparava à ladeira dos Cinco Paus, entre Dores e Siriri. Quantos acidentes!

Pois bem. As tropas de burros estavam com os dias contados nos tempos de Pinico de Ouro, mas ainda tinham um fôrgozinho, isto é, um folegozinho. Eu gosto mesmo é do linguajar bruto do povo. Linguajar que soa bonito. Errado? Que o diga o poeta Manuel Bandeira, um dos maiorais da poesia deste país, ultimamente tão carente de maiorais noutros campos e noutras artes. O que andeja por aí é um bando de minorais. “Te arrenego, gota serena da peste!”, como bem diria Pinico de Ouro. Mas por falar no linguajar do povo, disse Bandeira, no poema “Evocação do Recife”: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil / Ao passo que nós / O que fazemos / É macaquear / A sintaxe lusíada”. E eu, embora professor desde os 18 anos de idade, adoro ouvir as falas do povo, as distorções linguísticas e assim por diante. E o que dizer do sotaque sergipano, arrastado, cantado a não mais poder? Eu sou um sergipano genuíno. Interiorano. Suburbano. E tento escrever macaqueando o linguajar do povo de cujo seio eu não passo de um fruto mais ou menos peco.
Algum leitor deve estar dizendo: “Ih, começou a enrolar!”. Pois não é verdade? Eu quero falar sobre Pinico de Ouro e me bandeio para falar do linguajar arretado do povo e da poesia brasileiríssima do grande poeta pernambucano. Isso, claro, é enrolação.
Porém, deixe estar que eu vou me danar a falar de José Lourival Machado dos Santos, vulgo Pinico de Ouro. Eh, cabra azucrinado na medida! Sujeito avultado, como gostava de dizer Maria do finado Sinhô de Filomena. E por falar em Filomena, a velha Filó era a rapa da peste no pisado do samba de coco. Lembro-me dela. Da finada Juju de Manelão da Taboca, de Julinho do Catolé, de Mimita de “seu” Amaro de Zefinha de Tonha e de uma ruma de gente boa, naqueles já distantes festejos juninos dos meus tempos de moleque. Acabou. Tudo acabou. E eu, novamente, enrolando. Tenha calma, leitor amigo. Eu haverei de chegar a Pinico de Ouro, uma horinha dessas. É que eu dei de garra desse modo de sair por aí, dando uns tanjos no palavreado. Encomprido a conversa para ganhar tempo e assuntar o que dizer. Mania de quem tem a cabeça fraca, com os dois únicos neurônios prestáveis, os indefectíveis “tico” e “teco” se chocando, um batendo no outro e desalinhando os miolos. É uma agonia para mim.

José Lourival era Machado pelo lado da mãe, Dona Mariquinhas de Pedro do Candeal, e Santos pelo lado do pai, Valdomiro da Coitezeira, fazendola de boa água corrente, mas de uma terrinha carrasquenta da miséria, cheia de altos e baixos. Prestante mesmo só o baixio do riacho. Riachinho tísico no verão, mas que nunca deixou de correr. Da boca do sertão para cima, quem tinha água tinha grandeza. E assim continua. Rapazinho, mal tinha completado quinze anos, José Lourival danou-se para São Paulo, no pau-de-arara. Esse era o pau-de-arara salutar, ou quase. O outro, não. Muito nêgo bom sofreu nos porões da ditadura, sendo lascado nesse outro pau-de-arara. Tempos azedos, que tem gente com titica de galinha nos miolos pregando a sua volta. Haveria de dizer João Calisto, se vivo fosse: “Com fé em meu Padim Ciço, nunca mais!”. Arribando para São Paulo, José Lourival por lá passou bem uns dez anos. Voltou taludo. Um dinheirinho no bolso, que deu para comprar cinco burros de carga, tropa pequena, mas de grande presteza e serventia. Transportou de tudo: algodão, nos tempos de safras abastadas; melaço dos engenhos da Capela; cachaça do alambique Santa Cruz; sebo de boi derretido para a saboaria da Capela; sacos de milho debulhado de Glória e de Feira Nova; açúcar do Central. E por aí vai. Ou por aí foi. Enfim, cheguei ao máximo da enrolação. Vamos ao desfecho, que o caso é simples e deveria ser breve.

Jos Lourival voltou de So Paulo com a boca cheia de ouro - Foto: Divulgao

Jos Lourival voltou de So Paulo com a boca cheia de ouro - Foto: Divulgao

José Lourival voltou de São Paulo com a boca cheia de ouro. Dentes de ouro em riba e em baixo. Quando ele falava e, mais ainda, quando sorria, que sorridente ele era por natureza, apesar dos bofes quentes, a boca facheava. Reluzia que nem o sol da manhã, numa manhã de céu limpo. O que havia de errado em José Lourival? A falação. O palavreado sujo. Os xingamentos. Era, contudo, o jeito dele. Não era má pessoa. Não pisava em ninguém. Não se dizia maior nem menor do que todo mundo. Era só loroteiro. Meio arrumado na vida, botou-se para uma filha de Tinoco do Baburubu. Não sei por que mudaram o nome do povoado para Bravo Urubu. Alguém já viu um urubu bravo? Eu não. Tinoco era um sujeito igrejeiro. Andava na cola da batina do Cônego Miguel. Não perdia missa, novena ou procissão. A filha dele, Maria Clara, tinha empacado. Era a mais velha dentre cinco irmãs, porque Tinoco era galo femeiro. E a filha estava no caritó. Nenhum homem botara os olhos nela. Ou ela rejeitara os que pisaram no terreiro de sua casa. Não sei ao certo. O certo mesmo foi que José Lourival engraçou-se dela. E homem quando se engraçava, não tinha jeito: sentava no tamborete na porta do pai da moça ou a carregava numa noite de galos cantando fora de hora.

Tinoco, ao saber da pretensão de José Lourival, abriu a boca no mundo e disse que no batente dele não tinha lugar para um cabra que só dizia besteira, que era folozado de goela, que tinha, enfim, um pinico de ouro na boca. E que a boca suja do pretenso futuro genro só poderia ser limpa com água benta, na procissão do domingo da Ressurreição, quando Jesus venceu a morte. Maria Clara, todavia, queria deixar a donzelice atrás da porta. A Páscoa estava longe e ela não tinha tempo a perder. Não rejeitou a proposta do pretendente. Já ia completar vinte e sete anos. Dali a pouco já seria uma balzaquiana. Mulher de trinta, para quem leu o romance de Honoré de Balzac. Não teve jeito. Tinoco teve que engolir um genro de boca suja. E foi assim que José Lourival passou a ser chamado de Pinico de Ouro. Apelido sempre foi danado para pegar. Aquele pegou.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 05 e 06 de abril de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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