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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 25 de janeiro de 2016

Curdulina :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)

– Curdulina! Ô Curdulina! Curdulina!!! –. Ora, era muito cedo para alguém estar berrando à porta de Maria Cordulina, solteirona despachada, afamada costureira, filha do finado Bastião do Riacho dos Ovos, riacho que só vê água em época de boas chuvas. Ademais, é riacho seco, sem valimento algum. Os leitores sabem onde se situa o Riacho dos Ovos? Quem não é de Dores ou Feira Nova pode até pensar que eu estou inventando o nome, batizando o riacho com um nomezinho chistoso, só para chamar atenção. Pois não estou, não. O Riacho dos Ovos fica ali (estou até esticando o beiço, como se faz no interior, para apontar um lugar), entre Dores e Feira Nova, mais para lá do que para cá. Bastião era um paraibano da família Arruda, gente braba, que fabricava defuntos por diversão. Um deles, Zezito Arruda, gabava-se, na terra natal, de ter contribuído para povoar o inferno com mais de cinquenta. Puxa!
Naquela manhã, ainda quase madrugadinha, Cirilo de Fifia botou a boca no mundo para acordar Cordulina. Ante toda aquela gritaria, capaz de acordar um quarteirão inteiro, a encalhada assomou à janela da sala de estar. Despenteada, remelenta, a cara amassada pelos travesseiros. Parecia, com todo o respeito, uma coruja entocada. Antes de dizer alguma coisa ao pregoeiro madrugador, ela bocejou três vezes. E, afinal, disse: – Cirilo, seu fio de uma abençoada, você tá avariado do juízo? Madrugou de quengo mole? –. O marido de Fifia de Aparício do Acoita Manhoso, respondeu na bucha: – E então é assim, sua mal agradecida? Num foi tu quem pediu para eu lhe acordar às quatro e meia? Tu num vai pegar a marinete pro Aracaju? A marinete sai às cinco e meia. Em ponto. Ou tu pensa que é fia de Pedro da Marinete, e que pode fazer a hora de saída da lotação?
Cabeça oca. Cabeça de vento. Como podia ter dormido tanto, se aquela viagem seria a viagem de sua vida, se aquele dia seria o dia de sua libertação? “Minha Santa Terezinha do Menino Jesus! Eu ando com a cabeça no mundo da lua. E o mundo da lua só presta mesmo pra São Jorge”, ela exclamou de si para si mesma. Cordulina nem disse “muito obrigado”. Bateu com a janela nas fuças de Cirilo, que, sorrindo, gritou no meio da rua: – Ô mal educada! –. E saiu rasgando os beiços, como se diz no sertão, quando alguém sorri à vontade.
Manhãzinha friorenta de começo de setembro. Finzinho de inverno. O vento soprando para enxugar a terra. Nos matos, os floreios começavam a aparecer. As sucupiras, as juremeiras, os pés de murici, os pé de são-joão, as canas-fístulas, os paus d’arcos, enfim, um sem-número de árvores e arbustos já antecipavam, em dias, a primavera. E quem disse que não tem primavera naquela boca de sertão? Só quem nunca botou os pés por lá. Não tem uma primavera do tipo que se tem no hemisfério norte. Ah, isso não! Mas, os trópicos têm, sim, a sua primavera cabocla. Primavera tropical, que tanto bem faz às vistas das pessoas e aos passarinhos, principalmente aos beija-flores, e às abelhas. Polinização e mel. Dádivas da Mãe Natureza. Dádivas de Deus. Uma belezura! 
Cordulina correu para assear-se. Banho? Não daria tempo. Ora, ela tinha tomado banho antes de deitar-se, lá pelas nove e meia. “Num tô cagada nem nada. Tô limpinha!”, pensou. Lavou o rosto. Passou uma toalha molhada nas axilas. Penteou-se. Arrumou-se. Arrumou a bolsa. Nela colocou o que precisaria e também o que não lhe faria falta alguma. Olhou-se no velho e grande espelho, quebrado no canto esquerdo. Sentiu-se bem. Fazer o quê? Ela se sentia bem. Era o que importava. Coruja entocada uma ova!
Às cinco e dez, enfim, Cordulina saiu de casa. Ela morava perto da Praça do Comércio, onde ficava o ponto das marinetes. Um dia, era a marinete de Pedro Menezes. Outro dia, era a marinete de Aldon Figueiredo. Revezavam-se. Não faziam concorrência. Não tinha briga. Cordulina comprou a passagem a Aloísio de Hilda, o cobrador. João de Irene, o motorista, tomava café no bar de Edmundo. Ali sempre aparecia um grupo de madrugadores, para um cafezinho, ou para um café reforçado com cuscuz, ovos estrelados e carne de sol, e, claro, para falar da vida alheia. E por falar em carne de sol, nada como um capeado do coice da alcatra! Cícero Guarda avistou Cordulina, quando comprava a passagem, e gritou: – Dona Curdulina, vai à capital? –. E ela respondeu, também gritando: – Vou. Por quê? Quer pagar a minha passagem ou quer ir mais eu? Eu te levo no bagageiro, seu bode velho –. No bar, todos caíram na gargalhada. E o velho guarda noturno também. Ali, toda manhãzinha era uma festa.
Em Aracaju, após uma longa viagem, que, naquele tempo, era pela estrada de rodagem lamacenta ou empoeirada, passando por Siriri, Divina Pastora, até chegar a Maruim, parada obrigatória para quem quisesse tomar café, na Praça da Matriz, Cordulina dirigiu-se à Cúria Metropolitana. Aquele era o dia de sua libertação.
O Padre lhe dissera que somente o senhor Bispo poderia lhe libertar. Que tamanho grilhão lhe pesava sobre os ombros, a ponto de um padre tarimbado como aquele, não ter gabarito para lhe aliviar? Seria pecado cabeludo? Capital? Pecado mortal de mulher balzaquiana? Sei não... Bem pensando, teve um tempo que se andou falando coisas de Cordulina com Afonso de Lameu, um jogadorzinho do Dorense, um pé rapado, que não tinha onde cair morto. Ninguém nunca viu esse tal Afonso com Cordulina, quer beirando os beirais de sua casa, ou quer nela entrando ou dela saindo, às claras ou sorrateiramente. Ninguém jamais provou nada. Cordulina era uma mulher limpa.
Enfim, eis Cordulina diante do senhor Bispo. A solteirona contou-lhe o que tanto lhe afligia. Era uma promessa feita a Nossa Senhora das Dores, padroeira da cidade, quando ela esteve muito doente, quase dando de cara com a morte. Arquejara várias noites. Chegaram a colocar a vela em sua mão. Ficou morre não morre por vários dias. Na aflição, prometera a Nossa Senhora que se ficasse boa, passaria a sua casa para a Paróquia. Em vida, dela; em morte, de Nossa Senhora. E ela contou logo ao Padre sobre a promessa feita. Mas, ocorre que, há poucos dias falecera uma vizinha, viúva e avó de uma netinha órfã de pai e mãe, que ficaria ao Deus dará. A menina era um mimo e adorava Cordulina. E esta adorava a garotinha de seis anos, que, por enquanto, estava na casa de uma tia-avó, que dela não se engraçava. Cordulina queria ficar com a menina. Já estava tratando do caso junto ao escrivão do Fórum, que lhe encaminharia a um advogado.

Cordulina só tinha de seu a casa prometida a Nossa Senhora. Promessa feita era promessa a ser cumprida, salvo se ela fosse desobrigada pelo senhor Bispo. Foi o que disse o Padre, de olho, segundo as más línguas, na casa de Cordulina. Ele não esperava que ela fosse ao Bispo, ou que este a recebesse.
O senhor Bispo ouviu Cordulina em silêncio. Depois, segurou as suas mãos e disse: – Minha filha, Deus está lhe confiando a guarda dessa menina. Acolha-a como se estivesse acolhendo a própria Nossa Senhora em sua casa e em seu coração. Você está desobrigada da promessa. A misericórdia de Jesus lhe tocou. Vá em paz.  
Em paz, ela se foi. E como foi!

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 24 de janeiro de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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