Leninha e Petrúcio :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
– Mônica, ô Mônica, saia na janela, filha de Deus! –. Era Júlia Marques, professora aposentada, viúva devota de Santo Antônio, o casamenteiro. Mônica, sua vizinha, estava terminando o banho. O calor daqueles dias era de matar. Júlia repetiu o labafero umas nem sei quantas vezes. Enfim, a vizinha apareceu na janela, de touca na cabeça e enrolada numa toalha marrom. – O que foi mulher? Olhe só como eu estou! O mundo está se acabando ou você ganhou na mega sena acumulada e quer dividir comigo? – Não é nada disso, sua tonta. É Leninha. – E o que tem ela? Endoideceu de novo?
Vamos aos fatos. Leninha, outra devota de Santo Antônio, tão devota que comprou uma casa nas proximidades da colina do Santo Antônio, tão logo se mudou da Patioba para Aracaju, lá se iam uns vinte e tantos anos. A pobre coitada nunca conseguiu casar. Namorados? Teve uns cinco ou seis. Chegou aos cinquenta e oito anos de forma invicta, intacta. Donzela de cadeado passado. Nunca tivera um emprego. Vivia sem apertos com os aluguéis de três casas, uma em Japaratuba, alugada à Prefeitura, e duas em Aracaju, no Santo Antônio e no Siqueira. Casas com pontos comerciais. Bem alugadas. A casa em Japaratuba ela recebeu em doação de uma tia solteirona, sua madrinha de crisma. As duas casas em Aracaju ela as comprou com o dinheiro da herança dos pais, quando vendeu o bom quinhão de terra herdado na Patioba. Segura, tinha uma poupança que lhe socorria em momentos de maiores gastos, geralmente com questões de saúde, ou quando fazia os passeios, para lugares de romaria ou coisas que tais, sempre ligadas à Igreja.
O problema de Leninha era a saúde. Sofria de esquizofrenia. Coitada! Ela foi internada várias vezes. Vivia debaixo de remédios controlados. Quando as crises davam a cara, ela era socorrida por uma prima, que morava ali por perto. Uma ou outra vizinha também lhe prestava assistência nos momentos de crises.
Domingo. Missa na Colina. Leninha chegou tarde, a Missa já começando. Sentou-se no último banco, ao lado de um senhor bem composto e circunspecto, com a Liturgia Diária nas mãos. Leninha esqueceu o seu exemplar, tão avexada que estava ao sair de casa. Gentilmente, o senhor direcionou o livrinho para o lado dela, dividindo a leitura. Missa terminada, cada um para o seu lado. Aproximava-se a Trezana. Junho à vista. No domingo anterior ao início da Trezana, eis Leninha novamente atrasada e sentada, por coincidência, ao lado do senhor bem posto e circunspecto. No momento do abraço da paz, um demorado aperto de mão. Acabada a celebração, um afetuoso cumprimento dele para ela, na saída da igreja. Um comentário daqui, outro comentário dali. Pronto. Com poucos dias, o namoro começou. Petrúcio era aposentado do Ministério da Agricultura. Viúvo há quatro anos. Sessenta e cinco anos de idade. Enxuto. Um filho na Bahia e uma filha na França. Casados. Devoto do Glorioso Santo Antônio. Antônio era o seu falecido pai, José Antônio. Antônio era ele mesmo, Antônio Petrúcio. Antônio era o seu filho, Antônio Luiz. Devoção por inteiro.
Namoro de pessoas maduras. Pessoas que se solicitavam. Que precisavam de companhia. Fecharam seis meses de namoro. Marcaram o casamento. Leninha fazia questão de um belo vestido de noiva. Afinal, esperou pelo casamento como uma criança espera pelo primeiro pedaço de bolo numa festa de aniversário. Seria dali a três meses. Tudo combinado por ele com o filho e a filha, que estariam presentes.
Ora, casamento em vias de ser celebrado, Leninha convidou Petrúcio para mudar-se para a casa dela. Casa avarandada, fresca, asseada, que nisso Leninha caprichava, apesar das crises de esquizofrenia. Aliás, crises que não se abateram sobre ela no tempo de namoro. Uma bênção! Depois de hesitações e mil ponderações, ele topou. Impôs, porém, uma condição. Dormiriam separados. Não teriam contato físico mais afoito antes do casamento. Não cairiam em pecado. Ele fora educado na fé como requeria a um jovem fincado no seio de tradicional família católica, precavida contra o mundo destrambelhado, como ele dizia. Alguém poderia dizer que ele era corola. Bem. Cada um diz o que quer. Petrúcio era um homem de religião. Tão diferente de um primo, seu vizinho e amigo do peito, Célio Confusão, que era metido na vadiação, ou, como o próprio dizia: – Meu primo Petrúcio é puro e casto. Já eu sou puto e gasto –. “Um horror!”, diria Petrúcio, um verdadeiro homem pio.
Combinada a forçada, mas necessária, separação de corpos, até que o sacramento do matrimônio fosse oficiado, Leninha e Petrúcio viveram, pode-se dizer, dias felizes. Todavia (não sei por que, mas há quase sempre uma conjunção a tirar o sossego de muita gente!), o fogo da concupiscência soltou suas labaredas dentro de Leninha. Lenha velha seca, pronta para a combustão. Uma coisa terrível. Ela fez de tudo para Petrúcio adiantar-se no cozimento da garapa. Era da garapa que se fazia o açúcar. Aquele, contudo, era, na visão do noivo, o açúcar do Mal. De Leninha ele fugiu como o diabo foge da cruz: – Cruz-credo, Leninha! Não me leve a pecar como Eva levou Adão. Isso é coisa do demo. Mantenha-se composta! –. Não teve jeito para o fogaréu dela. O fogo de Leninha sucumbiu. Virou brasas cobertas por cinzas. Como fogo de monturo, queimando por baixo.
Eis que, na noite anterior àquele dia em que a professora Júlia Marques trombeteou na calçada de Mônica, a crise de esquizofrenia desceu de mala e cuia sobre Leninha. Foi um alvoroço danado. Ela queria, mas Petrúcio disse: – Eu não quero! –. Nada deste mundo lhe faria cair em pecado. Não haveria tentação que lhe fizesse ceder. Conhecer, no sentido bíblico, uma mulher sem, antes, submeter-se à maravilha do sacramento do matrimônio, nem pensar. Ante a mais dura recusa, Leninha abriu o bico, tomada pela crise: – Você é um homem ou é um coió, Petrúcio? Pra que eu quero um homem morto nas calças? Comigo não tem essa de espera, não. Ou vai ou racha –. Pois com Petrúcio não foi nem rachou. Ele nunca soube que Leninha sofria de esquizofrenia. Uma irmã de sua falecida mulher sofria dessas crises. Era um desmantelo. Alarmado, ele saiu de casa. Juntou os poucos trens que levara de sua casa para a casa da noiva e se mandou.
Foi, então, que naquela noite o noivado foi pro beleléu. Casamento? Não haveria mais. Pela manhã, Leninha foi internada, mais uma vez. E, assim, Mônica, prima de Leninha em segundo grau, soube pela voz de Júlia Marques que ela estava na clínica, para mais uma temporada. Quanto a Petrúcio, dele não se teve mais notícia. Se alguém souber de seu paradeiro, por favor, não avise a Leninha. Senão, ela será capaz de fazer um carnaval.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição especial de 06 a 10/02/2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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