Aracaju (SE), 02 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 14 de fevereiro de 2016

Quem comeu Maria Fulô ? :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Não sei se os leitores conheceram João de Zé Fulgêncio. Aquele tipo, metido a curandeiro, que curava bicheira em animal, picada de cobra, fosse de que tipo fosse. E curava pastos. Ou seja, fazia benzeduras em soltas de gado, para evitar picadas de cobras nos bichos de criação. Alguém aí, que lê este escrito, o conheceu? Não? Ninguém nunca ouvir falar dele? “Vige”, que povinho de pouco conhecimento ou de pouca lembrança! Nem o Dr. Francisco Rollemberg, que operou tanta gente, não o conheceu? Se não me falha a memória, João de Zé Fulgêncio submeteu-se, bem lá para trás, a uma cirurgia de hérnia. Não teria sido, então, o Dr. Chico o seu cirurgião? Também, com tantos pacientes operados não dá para lembrar-se de um paciente sem maiores referências, não é mesmo? Pois bem. De qualquer forma, espanta-me que ninguém o tenha conhecido. Ninguém, ninguém? Puxa vida! “Tou passado!”. Povinho desmemoriado esse que lê jornal e anda futucando a internet.

Imagem ilustrativa (Foto: Reproduo/internet/Youtube)

Imagem ilustrativa (Foto: Reproduo/internet/Youtube)


Pois agora eu vou dizer quem foi João de Zé Fulgêncio. Não foi ele apenas um curandeiro. Ele foi muito, muito mais do que isso. Até delegado ele foi. Sim senhor. E dos bons. Delegado no povoado Gado Bravo Sul, do outro lado do rio Sergipe, nas Dores. No tempo em que não havia a ponte. Nas enchentes, atravessava-se na corda. E tinha uns sujeitos peritos nessa arte. Que era uma arte atravessar o rio Sergipe cheio, botando água nos olhos dos paus, era sim. O rio “têbei” de água barrenta, arrastando bagaceira e o sujeito agarrado numa corda estendida de margem a margem, atravessando gente e coisas. Antes que alguém me xingue, já que nem todo mundo aqui é do interior, é beradeiro, a palavra “têbei” quer dizer vazando pelas beiras, cheio demais. É palavreado do povo simples, que não precisa de estudos para criar ou entortar vocabulário.
João de Zé Fulgêncio foi ajudante de ferreiro, batendo enxada, foice e picareta na tenda de Pedro Mão de Ferro, foi funileiro, tropeiro, magarefe, vendedor ambulante, cabo eleitoral e delegado de povoado. Aí pelo meio ainda tiveram uns tempos bicudos em que ele fez biscates, os mais diversos. Como visto ele foi um homem de sete instrumentos e mais alguns. Como um homem desse não foi conhecido? Eu acho que deve ter gente aí, que está lendo agorinha mesmo, que o conheceu, sim. Não deve é se lembrar. Afinal, ele andejou por Capela, Glória, Estância, Aracaju, Marcação, Maruim e Riachuelo. Viveu um pouco aqui, um pouco ali, outro pouco acolá. Parecia ser aparentado com ciganos. Um homem que deixou tantos rastros por aí, não ser lembrado por ninguém? Eu não acredito. Mas, fazer o quê?  Cabe-me debulhar um pouco mais sobre quem foi ele, ou sobre fatos de sua vida.
Casado ele foi com uma filha de Emílio das Forquilhas, povoadozinho sem futuro, perdido nos sertões da Bahia, lá para as bandas da Serra Negra, ou melhor, bem mais para lá. Emílio era filho bastardo, como na época se dizia, de um coronel da Guarda Nacional, com patente comprada e paga com pepitas de ouro. Era o que se comentava. O velho Emerenciano das Forquilhas achou algum ouro lá para as bandas do Raso da Catarina, o bastante para comprar um mundão de terras e criar um magote assombroso de gado pé duro. Emílio, o sogro de João de Zé Fulgêncio, sendo filho de fora do casamento acabou vindo para Sergipe, quando a mãe e ele foram escorraçados a mando da mulher do ricaço, que era uma cobra e cujo pai era muito mais rico do que o marido. Uma arribada dolorosa para a mãe e o filho! Aqui, ela se juntou com um velhote rezador, de quem João aprendeu a arte das benzeduras.
Tem é coisa para falar sobre João de Zé Fulgêncio. Para não cansar os leitores (como se eu não gostasse de cansá-los!), vou direto a uma questão do tempo em que ele foi delegado comissionado pela Prefeitura Municipal, no povoado Gado Bravo Sul, aliás, lugar visitado pelo bando de cangaceiros chefiado por Zé Sereno, lugar-tenente de Lampião, na década de 1930. Mas, isso foi bem antes do ofício do delegado João.
Era uma manhã de sábado. João de Zé Fulgêncio estava em casa, após o café, quando chegou esbaforido o filho de Dona Minervina de Libório do finado Abdias. Tuquinha era o nome do moleque, que chegou resfolegando, quase sem ar. Danada tinha sido a carreira. – ‘Seu’ João, mãe mandou dizer que comeram Maria Fulô e ela quer providência –. Respondendo, o delegado, perguntou: – E quem comeu Maria Fulô? –. O menino esbugalhou os olhos: – Mãe num sabe. Ela disse que o senhor é que é o delegado e tem que descobrir –. Sábado de manhã. João de Zé Fulgêncio tinha um monte de cosias para fazer, na véspera da feirinha do povoado, que naquele tempo ainda havia feira no Gado Bravo, aos domingos. Feira boa. Na época, João era magarefe. – Ô meu filho, sua mãe num tem nem uma pista de quem fez mal a Maria Fulô? Ela é tão novinha, coitada! Ela já tem namorado? –. Respondeu Tuquinha: – Namorado? Só se for Bastião –. Espantou-se o delegado. E pensou: “Mas, logo Bastião? Casado e com uma récua de filhos. Primo de Dona Minervina... O mundo tá mesmo perdido. O mundo e Maria Fulô”. Ele despachou o menino – Diga a sua mãe que logo mais eu passo por lá pra tomar pé da situação. Vá ligeiro antes que ela tenha um torço –.
Maria Fulô era uma criança para bem dizer. Se ela tinha, tinha lá uns treze anos. E Bastião, calminho, do tipo amoitado em casa, fazendo das suas, mostrando as unhas tão bem guardadas até então. Era uma situação para a polícia e o juiz. Ele, João Francisco dos Santos, vulgo João de Zé Fulgêncio, era apenas delegado só no nome, uma espécie de aconselhador das pessoas do povoado, um olheiro do prefeito, para zelar pelas coisas dali e para pedir votos para o grupo político do prefeito, nas eleições. O povo o chamava de delegado por chamar. E, assim pensando, o delegado por deferência do povo dirigiu-se à casa da mãe da ofendida. – Comadre, oi eu aqui. Me conte de uma vez essa presepada. Então, foi Bastião mesmo quem fez mal à menina? –. Dona Minervina de Libório do finado Abdias estranhou a pergunta. – Oxente! O compadre está falando de quê? –.
Bem. Foi aí que a coisa mudou de rumo. Maria Fulô era a caçula das filhas de Dona Minervina e Libório. No todo, eram seis meninas e cinco meninos, afora três que morreram ainda nos cueiros. Pobres naquelas bandas tinham filhos como preás. Para pirraçar, os irmãos botaram o nome dela numa cabrita há poucos meses nascida. E Bastião era também o nome do bode do chiqueiro, que tinha uma mecha branca no pelo da cabeça, como o primo bastião tinha uma mecha igual na vasta cabeleira. Ocorreu que algum gatuno deu conta de Maria Fulô, a cabritinha. E o namorado da cabrita seria, na visão de Tuquinha, simplesmente o bode Bastião, ao responder à pergunta do delegado sobre se Maria Fulô tinha namorado. Foi isso que gerou a confusão. Uma falta de entrosamento na conversa.
Não demorou muito e João de Zé Fulgêncio deu conta do larápio. Era um trabalhador de ‘seu’ Valdeck Figueiredo, novato por ali. Pegou uns dias de cadeia, em Dores, e pagou o preço justo pela cabrita, que ele furtou e comeu numa cachaçada com os amigos. Falta explicar uma coisa: como, porém, Dona Minervina sabia que Maria Fulô, a cabrita, tinha sido comida? É que a cabeça e as patas do animal, por descuido do ladrão, foram jogadas no valado de Mané Pereba, na estrada da Taboca. E um vizinho deu aviso. Simples assim.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 14 e 15 de fevereiro de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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