Aracaju (SE), 02 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 03 de abril de 2016

MANEZINHO DE ZÉ PIABA :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

Jos Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

Ah, Manezinho de Zé Piaba...! Sujeito gaitoso, metido a gato mestre na arte de enrolar as pessoas. Enrolar, porém, na maneira de contar lorotas, de inventar histórias hilariantes para divertir crianças e adultos. Vocês sabem de qual parte do mundo é originário esse gaitoso sujeito? Garanto que não sabem. Sabem nada! Sou capaz de dar um picolé de pitomba a quem acertar. Mas, com certeza, ninguém acerta não. Até porque eu sei que, até agora, vocês nunca nem ouviram falar de Manezinho de Zé Piaba. Todavia, eu darei o bizú. Vou começar dizendo a origem de Zé Piaba, o pai de Menezinho. A origem do pai é também a do filho.
Buraco D’Anta é o nome do povoadozinho perdido nas catingas do sertão baiano de onde é a família piabenta. No passado eram uns Piabões, homens valentes que forneceram cangaceiros a Lampião. Uns onze ou doze. Homens de sangue no olho e cabelo nos buracos da venta. Homens de sim, sim e de não, não. Pobres, mas honrados. Lutavam na lavoura e na criação. Lutavam contra as intempéries das secas. Contra as pragas que atacavam as lavouras. Contra os carrapatos e outros parasitas que atacavam os bichos. O tempo desses Piabões passou. Restaram os Piabas. Não que estes fossem menos valentes. Não. A nova safra dos Piabas não era de engolir desaforo, de refugar diante de uma situação qualquer, que parecesse adversa. Piaba é sempre Piaba. Não arreceia de coisa nenhuma. É só não mexer com um deles. Se mexer, o pau quebra, o vento enrosca árvore e é até capaz de trovejar fora de época. Como diria o meu compadre Peixotinho: “Ah, menino, tu nem sabe o que é um cabra de trabuco na mão direita e faca peixeira na esquerda!”. Nem quero saber.
Pois se os Piabões se foram, deixaram o sangue de boa tintura nos Piabas, essa safra mais calma, porém, nem por isso, menos decidida, quando é preciso. São apenas mais calmos, os Piabas, dentre eles Zé Piaba, pai de Manezinho.
Bem. Digo-lhes, agorinha mesmo, quem é Manezinho. Este Manezinho, o filho mais novo de Zé Piaba, que, por sinal, é pai de quinze filhos, todos vivos. Netos, Zé Piaba deve ter uns quarenta ou mais. Houvesse açude para comportar tantos Piabas, se peixes eles fossem! Mas, não são não. São homens e mulheres de bem. Manezinho é casado com Terezinha de Pedro de Caçulo. E Pedro de Caçulo, pai de Terezinha, é meu amigo de infância, só um pouquinho mais velho. Manezinho nasceu na Bahia. No Buraco D’Anta. Ainda pixutitinho, bandeou-se para cá com a família. Outros Piabas já tinham tomado o mesmo rumo desde a seca de 1971. Seca danada, que se estendeu por quase três anos, naquelas paragens de catingueiras. Em minha terra, Zé Piaba deitou suas raízes. Daqui não saiu. É homem de mais de oitenta anos de idade. Bem mais. Mas, ainda labuta com o gadinho que tem. Até parece feito de um bom tronco de baraúna. Forte que só. Aqui ele viu a família crescer. Viu os filhos e as filhas casarem e botarem no mundo um montão de novos Piabas. E os Piabas netos já estão dando crias.
Retomando a descrição de Manezinho, este é um Piaba querido por todos. Não sei de viva alma que dele não goste. Diz o pai dele, Zé Piaba, que o jeito de ser do filho foi herdado de um tio-avô, Marcolino Piaba, contador de histórias, cordelista e gente boa, que morreu com a idade de cento e poucos anos, lá no Buraco D’Anta. Manezinho é comerciante. Dono de uma bem sortida mercearia, que vem crescendo. Começou como bodega. Acanhada. Cresceu um pouco. Passou para uma casa maior, nova, construída para tal. Dobrou de tamanho. Não demora muito e será mercadinho. “Mercadinho Piaba”. Afinal, a mercearia é, sim, “Mercearia Piaba”. Originalíssimo. Freguês de Manezinho não é freguês. É sócio. Pois é assim que ele nomina cada freguês e cada freguesa. E assim ele cativa a todos, além do atendimento que lhes dá toda a família que trabalha na mercearia: ele, a esposa, dois filhos e duas filhas. Daqui a pouco, genros e noras, que os rapazes e as moças estão de namoro engatado.
Sexta-Feira da Paixão. A mercearia abriu só até as vendas de mantimentos próprios para o café da manhã dos fregueses. Um dia de tamanho significado para a humanidade, diz Manezinho, dia da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, não é dia de trabalhar. Não é dia de escancarar as portas de uma venda como a sua. É dia de preceito. Dia de respeitar a memória do Filho de Deus. A família Piaba sempre foi, desde os troncos, católica de tinir. Não se sabe de um só Piaba que tenha abandonado a fé de seus antepassados.
Pois, então, na Sexta-Feira Santa Manezinho baixou as portas da mercearia por volta das nove horas. Terezinha estaria na cozinha preparando o bacalhau com mamão, preciosidade consumida com comedimento, que não era dia de banquete. Bacalhau bom, comprado no Aracaju, e não aquele peixe brabo que é vendido em dois mercadinhos da cidade como se fosse bacalhau. E o mamão? Mamão de cheiro, grande, verde, bem verdoso, que só assim tem serventia para o ensopado. Lá para as onze horas, eis que bateu à porta da casa de Manezinho, rente à mercearia, Dona Zuleide de Chico Pinto. “Manezinho, fio de Deus, preciso de vinagre, que lá em casa num tem uma gota sequer”, disse a freguesa. Manezinho, porém, disse que não poderia abrir a mercearia àquela hora, que era a hora da agonia de Jesus. Dali a pouco seria a hora de sua morte. Contudo, ele lhe arranjaria um pouco do vinagre que Terezinha tinha na cozinha. “Eu num quero incomodar sua mulher não, Manezinho. Eu quero comprar o meu vinagre”. E foi, então, que Manezinho narrou esta historieta, para dissuadir Dona Zuleide: “Lá em minha terra, no Buraco D’Anta, sabe Dona Zuleide?, uma senhora foi comprar vinagre na venda de ‘seu’ Malaquias, primo de meu avô Beto Piaba, numa Sexta-Feira da Paixão. A bodega estava fechada por causa do preceito. Mas, ela tanto insistiu que o bodegueiro, para se livrar de tanta aporrinhação, abriu a bodega e vendeu o vinagre. Resultado, pra encurtar a história: o vinagre amargou mais na comida do que aquele que deram pra Jesus beber no alto da cruz. Azedou a comida, que era um ensopado de camarão de água doce com maxixe, que lá, em tempo sem seca, tinha um bom riacho, que dava um camarão solto, e que era uma beleza. Pois não foi que a comida azedou de um jeito, que adoeceu toda a família? Adoeceu de tal modo, que não ficou viv’alma. Morreu todo mundo daquela casa. Seis pessoas. A senhora tá vendo o que é que pode lhe acontecer se eu lhe vender vinagre a esta hora?”.
Dona Zuleide riu.  Dobrou a risada. Gaitou de modo que os bofes resfolegaram. E disse: “Manezinho, tu bem que podia escrever suas lorotas e botar no jornal. Vai-se ver que pode até ter gente que goste de ler suas histórias malucas”. Enfim, Dona Zuleide aceitou a oferta de Manezinho e levou meia xícara de vinagre.
Ora, se Manezinho de Zé Piaba quiser, eu posso falar com o pessoal da redação do Jornal da Cidade e do Clicksergipe. Quem sabe, não se arranja um espaço para ele? E ele pode muito bem concorrer com as histórias de alguém que eu conheço.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 02 de abril de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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