Aracaju (SE), 01 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 16 de maio de 2015

A revolta das almas :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Foto: ClickSergipe

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Valdemar de “seu” Tonico do Beija-Flor dos Gravatás, povoado perdido nos confins do Raso da Catarina, mas desde meninote morador nas Fontinhas do finado Juca do Caípe, começou a construir uma casinha encostada ao cemitério, no tempo em que a morada dos mortos era isolada. Hoje, não. É arruado por todos os lados. Virou área nobre. Mas até a década de 1970 não era assim. Pois bem. Valdemar era fraco de bolso e contou com a ajuda do prefeito de então e de várias pessoas. Levantou a casinha de pé direito baixo como eram as casinhas de pessoas desendinheiradas. Uma varandinha, um quarto, uma pequena sala e uma cozinha. No lado de fora, um banheiro, para tomar banho de cuia, pois ainda não havia água encanada por ali. Sanitário? Nem pensar. Valdemar atendia as necessidades fisiológicas como podia. O número dois ele o fazia sobre papeis de jornais, que ele os pegava, depois de lidos, com “seu” João da Farmácia, para quem trabalhava, e que era assinante de um diário da capital, que os Correios entregavam com três dias de atraso. Fazia o serviço e jogava o embrulho por sobre o muro do cemitério, no frescor da madrugada, antes que a cidade acordasse. Ele ficou useiro e vezeiro em tanger pacotes. Defunto não acordava. Defunto não sentia o fedor do número dois de Valdemar. Ah, mas Vardo, o coveiro, sentia. Ele e Zefa, sua mulher, que o ajudava no zelo das catacumbas e das covas rasas. Aliás, o cemitério, no tempo deles, era de dar inveja a casas de ricaços, no que se referia à limpeza. Um brinco!
Toda manhã, Vardo se deparava com o pacote do número dois. Quem estaria tangendo aquela defecção todo dia, fizesse chuva ou fizesse sol? Ocorre que Valdemar, para que dele não desconfiassem, tangia o “bolo” fora do limite de sua casa. Ele o tangia na quina, vizinha ao terreno de “seu” Juca. Ora, quem faria aquilo? Não se poderia saber. E assim ele continuou fazendo por semanas a fio. Defecava, empacotava e tangia para o outro lado. Uma atitude merecedora de toda reprovação. Sobre todos os sentidos.
Vardo, o coveiro, praguejava e limpava a sujeira, pois o “pacote” se desmanchava no chão limpinho, às vezes se espatifando sobre covas e catacumbas. Os defuntos eram desrespeitados em sua “dignidade defuntosa”, como dizia Vardo. Pobres defuntos!
É evidente que em face da ocorrência diária, Vardo desconfiava que o artífice de tamanha porcaria, seria mesmo Valdemar de “seu” Tonico. O sujeito morava sozinho e ao redor dele ninguém mais morava. Mesmo tangendo o número dois a partir da quina, fora dos limites de sua casa e de seu quintal, não poderia haver outro suspeito. O problema era que Vardo não se dava com ele, por causa de um entrevero ocorrido no Bar Cana, de Edmundo Leite, no qual Vardo trabalhava nos momentos de folga. Bate- boca besta por causa de uma conta. Ficaram sem se falar. Por essa razão, Vardo não tiraria a situação a limpo com o desafeto. Mas tudo tinha o seu tempo.
De tanto limpar a sujeira diária do número dois, ali jogado, Vardo tomou a decisão de pôr cobro àquela sem-vergonhice. Como ele faria? Bem. Numa noite de verão, o mormaço do dia penetrando na noite estrelada, o orvalho dando de beber às bem cuidadas plantinhas que adornavam algumas catacumbas e algumas covas rasas, as fazendo florir, Vardo resolveu pernoitar no cemitério, perto da quina receptora dos pacotes. E assim ele o fez. Gozou do silêncio de morte daquele lugar que ele zelava como ninguém o poderia fazer melhor. Protegido do sereno, que lhe poderia trazer um resfriado, ele fumou um sem-número de cigarros de fumo bruto, comprados na bodega de “seu” Jove. Fumo do bom, que fazia o mel escorrer pelo canto da boca. Cigarro pé duro enrolado por Dona Júlia de Tonho Miúdo, na estrada do João Ventura para o Gonçalão.
O coveiro não pregou o olho. Ouviu grilos e rãs chamadoras de chuvas. Estavam próximas as trovoadas. Acolá, um cachorro ladrava. Por todo lado, galos cantavam. Um puxava o canto e outros respondiam. Uns cantavam bem perto, outros muito longe. Cantavam em cadeia. Cada um queria dizer alguma coisa. Enfim, todos diziam a mesma coisa. Lá pelas tantas, Vardo ouviu o baque. Ploft! O pacote espatifou-se. Mais que depressa, ele esgueirou-se sobre o muro baixo e viu o vulto de Valdemar dirigir-se lentamente para casa. Era ele, sim. E não poderia ser outro. Confirmada estava a suspeita do coveiro zeloso. Agora, era pensar no que fazer, numa artimanha, para desmascarar o sujão nojento.
Vardo, então, contou o sucedido a uns vizinhos e amigos, todos com entes queridos dormindo o sono eterno. Juntaram-se uns doze sujeitos. Todos vestindo a túnica branca de penitente. Quem não a tinha, tomou de empréstimo. Uns poucos, dois ou três, pois a maioria saía na Procissão dos Penitentes, na Sexta-feira da Paixão. Eles não ficaram a noite toda de atalaia, como Vardo o fizera. Por volta das três horas da madrugada, todos se acharam no cemitério serenado. Acoitaram-se junto ao muro, mas em distância segura da destinação final do arremesso de Valdemar. O muro do cemitério era baixo, o suficiente para demarcar o território do campo santo e de eterno silêncio.
No horário mais ou menos habitual, ali por volta das quatro e tanto, o baque. Ploft! Eis, então, que os sujeitos pularam o muro com as túnicas levantadas acima dos joelhos, para facilitar os pulos. Caíram de cipó em cima de Valdemar, que pensou que as almas dos defuntos tinham se revoltado contra ele. As “almas” deram nele, no tronco e nas pernas. Só pouparam a cabeça. Deixaram-no moído. Uma sova para jamais ser esquecida.
Manhã de sol já alto na imensidão azul, manchada por uma ou outra nuvem, Valdemar dirigiu-se à farmácia para comprar um remédio que lhe aliviasse as dores e os inchaços. Domingos, que o atendeu, indagou: “Andou brigando, Valdemar?”. E ele narrou o ocorrido. Domingos ponderou: “Ora, Valdemar, o que você fez não era direito. Jogar sujeira nos defuntos!?”. Ao que Valdemar respondeu: “E por acaso é direito enterrar defunto com cipó nas mãos?”.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 17 e 18 de maio de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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