A bengala :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
O telefone tocou. Era o filho. Queria jantar com ela. Queria tomar a canja que a mãe preparava com mãos de fada. Como aprendiz de escrivinhador, eu imagino se já houve fadas cozinheiras. Quem sabe? Tudo é possível no mundo do faz de conta. Após atender ao telefone, D. Catarina lembrou-se que, nalgum canto da casa, escondia-se uma velha agenda, provavelmente dos fins dos anos 1990, que ela esquecera e que guardava anotações de telefones de pessoas amigas, algumas das quais ela não tinha notícias há muito tempo. Aracaju parecia ter crescido além da conta. Ela queria manter contato com um amigo dos velhos tempos da Aliança Francesa. Não se lembrava do número do telefone do dito. Nem sabia onde poderia estar a bendita agenda. Já tinha revolvido a casa toda, a bem dizer. E nada. Quem sabe se uma fada sapeca não lhe escondera a agenda que, àquela altura, estaria com as páginas bem amareladas pelo tempo?
Ela olhou mais uma vez para a intrusa. Imóvel. Muda. Se a intrusa falasse, a viúva ensimesmada lhe diria poucas e boas. Embora ela, a intrusa, não tivesse culpa nenhuma por estar ali, como que a lhe desafiar. O médico a recomendara. Ela recusara. O neto, porém, levara-a. A avó, que se desdobrava pelo neto, o único neto, não lhe quisera desagradar. Teria que suportar a intrusa, ali no canto da sala. Sequer poderia escondê-la. Guardá-la no depósito dos bagulhos, no fundo da casa. O neto, que com ela almoçava dia sim e dia não, notaria que a intrusa não estaria ali na sala. Só lhe restava mesmo suportar a cara lisa da intrusa.
O médico, que era um bom médico, acabara lhe fazendo dois despropósitos. Recomendara a intrusa e, pasmem os leitores, um namorado. “Arranje um namorado, Dona Catarina. A senhora precisa continuar vivendo”. Como se viver fosse estar ao lado de um homem. Já não lhe chegara o seu finado marido? O que, ao lado dele, ela passou de bom ou de ruim, enterrou-se com ele. Outro homem? Nem pensar. Embora ainda não estivesse à beira de um mausoléu na Colina da Saudade, que Deus disso lhe livrasse, não poderia conceber a ideia de voltar a dividir a vida, a casa e a cama com outro homem. Ouvir, à noite, um ronco? De novo? Um homem catarrento, tossindo o dia todo? “Tosse, tosse, tosse...”. Um sujeito cheio de manias. Jesus Cristo a livrasse daquilo! Lembrou-se de uma prima, que sempre lhe dizia coisas politicamente incorretas: “Catarina, um velho e uma velha juntos, só servem para criar mofo”. Pois não era? Teve vontade de sorrir. E acabou sorrindo. Dobrou o sorriso. Já era uma gostosa gargalhada. Estaria ficando lelé da cuca, para gargalhar daquele jeito sem um motivo que valesse a gargalhada? Não, não estava. Até que era bom desopilar o fígado. Virgínia, a vizinha do lado direito, tinha uma irmã, divorciada, que adotara um boy. Virgínia tinha boa aposentadoria, gorda mesmo. Ela com sessenta e seis, e o moço com vinte e nove anos. Coisas da modernidade. Se os homens gostavam de mulheres novas, por que as mulheres também não podiam ter a preferência por jovens mancebos? Dona Catarina não recriminava ninguém, mas passava ao largo daquilo.
O Dr. Shimamoto, misto de japonês com alguma coisa, fizera duas recomendações despropositadas. Um namorado ela não queria. Nem novo nem velho. Nem maduro nem peco. Nova ela não era. Mas ainda tinha vigor. Andava nas cercanias dos setenta. Afora uma dorzinha no joelho direito, daí a recomendação de usar a intrusa, a viúva não sentia nada. Ou melhor, sentia uns “chegas-prá-lá” aparentemente sem importância. Nada que uns bons chás não resolvessem. Se o corpo tinha certos queixumes, o espírito mantinha-se jovial. Não tinha do que reclamar de mais sério, a não ser da presença da intrusa ali encostada no canto da sala, como que lhe esperando pacientemente. Esperando para lhe oferecer ajuda. Ajuda que ela cismava em não querer. Que nunca viesse a precisar dela, da intrusa! E que jamais voltasse a cabeça para outro homem, como sugerira o doutor misto de japonês com alguma coisa. Duas recomendações que sem elas Dona Catarina passava muito bem.
Dona Catarina levantou-se. Desligou o televisor. Tomou um livro nas mãos. Um romance lido nos tempos do Atheneu Sergipense. Graciliano Ramos. Vidas Secas. Depois de tantos anos, o que ela mais lembrava era do papagaio que a família de retirantes comera, para aplacar a fome. Aquele exemplar ela o comprara há pouco. Cristiano, o atendente da livraria, sempre solícito, tinha sido aluno do amigo cujo telefone estava anotado na agenda amarelada que ela não sabia por onde andava. Haveria de reler o romance em um átimo. Depois ela o repassaria ao neto, para uma tarefa escolar. Os jovens deveriam ler muito mais as obras dos bons autores brasileiros. Era o que ela achava. No seu tempo de escola lia-se muito. Agora, o Google resolve muita coisa. “Uma pena”, pensou Dona Catarina.
Novamente, ela olhou a intrusa no canto da sala. Que Deus a livrasse de, um dia, ter que usar aquilo. O joelho não haveria de demorar a ficar bom. Era só uma dorzinha de nada. O ortopedista, misto de japonês com alguma coisa, fosse fazer suas recomendações a outras pacientes. Não a ela. Um namorado e uma bengala. Que absurdo!
Dias depois, Dona Catarina, com o joelho direito aparentemente curado, a dorzinha tendo ido passear pelo mundo afora, disse ao neto, que tanto amava: “Meu filho, sua outra avó, Dona Eulália, não estaria precisando de uma bengala? Eu a vi outro dia no shopping e ela me pareceu andando com dificuldade. Você poderia levar essa bengala para ela”. O rapaz respondeu: “Não sei. Ontem à tarde eu a deixei no Dr. Shimamoto. Ela estava reclamando de dores na perna”.
A esperança de Dona Catarina era que o médico, misto de alguma coisa com japonês, fizesse à outra avó de seu neto as mesmas recomendações que lhe fizera. Só assim ela se livraria da bengala sem causar constrangimento ao neto. Quanto a recomendar um namorado a Dona Eulália, ela haveria de adorar. Já viuvara duas vezes. E acabara com o terceiro namoro nem faziam dois anos da última viuvez. A idade dela? Setenta e três anos. Uma viúva fogosa como a rapa da peste.
Ah, a agenda com o telefone do amigo ela o encontrara, enfim. Estava no meio de umas tralhas. Ligou para o amigo. E este lhe disse que tinha visto Dona Eulália, que ele a conhecia, tomando café numa livraria, acompanhada por um garotão malhado, cheio de sacolas de loja de grife masculina. Virou moda. Para Dona Catarina, só faltava mesmo a bengala, que Dona Eulália haveria de receber. “Fogo de viúva quando reacende, não há cristão que apague”, dizia sua velha mãe. “Vôte!”, digo eu.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 24 e 25 de maio de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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