As pererecas de Jandira :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
E ali estava Jandira, beirando os sessenta anos, solteira, amante de um bom filme, de um bom livro, de um bom prato e de seus dois gatos, Marisco e Momota. Os pais ainda viviam, no interior. As duas irmãs moravam no Rio de Janeiro, cidade que ela adorava. Com as manas, ela passava todos os réveillons, desde sabe-ia-se lá quando. Os três sobrinhos desmanchavam-se por ela. Um cunhado era como o irmão mais velho que ela não teve. O outro nem cheirava nem fedia.
A assistente social aposentada cuidava de um pequeno jardim, zelava da casa, fazia sua comida, tomava um cafezinho no shopping, tarde sim, tarde não, com umas amigas, ia ao cinema, lia, ia à missa dominical, fazia crochê para passar parte do tempo ocioso. E ajudava, aos sábados, no asilo. Tinha, em termos, uma vida cheia. Vida de aposentada, que vivia sozinha, sem arrependimentos de ter permanecido solteira e intacta. Não que ela não teve, no passado, alguns pretendentes. Teve-os, sim. Porém, amar mesmo de verdade, ela só amou a um deles. Zeferino Maia. Um jovem gerente do Banco do Brasil. Viúvo. Ele viuvou ainda muito novo, aos vinte e nove anos. A mulher morreu apenas dois anos após o casamento. Jandira o conheceu três anos depois do início da viuvez. Cortejaram-se por uns meses. Engataram o namoro. Ela tinha acabado de assumir o cargo na administração pública estadual. O namoro respeitoso ia muito bem até que o gerente foi transferido para a Bahia, terra de múltiplas variações de fé. Terra de santos e orixás. Terra de igrejas e terreiros. Terra de mulatas de mil requebrados. De tabuleiros cheios e apetitosos. Terra de mil encantos. E de mil tentações.
Longe estava o namorado. Falavam-se ao telefone quase todos os dias. Vez ou outra, ele vinha para um fim de semana. Hospedava-se no Hotel Jangadeiro, perto do “apertamento”. Um dia, após dois anos e meio da transferência do namorado, ela recebeu uma carta dele, na qual dizia que estava noivo da filha de um deputado federal baiano, dono de fazendas de cacau e gado. Pois é: o cacau e os bois valiam muito. Nunca mais ela namorou. Entrincheirou-se, como dizia sua avó, Dona Domitila. Por uns dias, sofreu muito. Depois, foi-se acostumando com a solteirice. Nunca mais confiaria em homem nenhum. Desilusão? Bastava uma.
Aquele era o primeiro inverno na casa nova. Afinal, mudara-se há apenas dois meses. Na sexta-feira antepassada, um aguaceiro desabara dos céus. Aracaju não podia ver água. E com a maré cheia, então... Choveu a madrugada toda. Choveu o dia todo. Interiorana, ela gostava de dormir ouvindo a música da chuva no telhado, gosto que não pôde ter durante os muitos anos em que morou no “apertamento”, que ficava no segundo andar. Agora, na primeira madrugada muito chuvosa que passou na casa nova, ela voltou aos tempos da infância e adolescência. A chuva tilintando nas telhas, escorrendo pelas biqueiras. Temperatura gostosa, que a fazia abraçar-se ao travesseiro. Companheiro de uma vida solitária.
No fim da tarde daquela sexta-feira, ela se deparou com uma rã no banheiro. Não tinha medo de rãs, mas elas lhe davam nojo. Encontrou mais duas delas na cozinha. Depois, já eram cinco. Jandira nunca mais tinha visto tantas pererecas. Lembrou-se do filme “A invasão das rãs” (“Frogs”), um filme pavoroso, tipo B, de 1972, dirigido por George McCowan, ao qual ela assistira no antigo Cine Aracaju.
À noite, recolhida ao quarto, na cama aconchegante, eis que ela, antes de apagar a luz, contou nas paredes quatro rãs. Era, sim, uma nova invasão daquela espécie de anfíbio anuro da família Ranidae. Ligou para uma amiga bióloga, dizendo-lhe que tinha algumas rãs de estimação. A outra respondeu, inocentemente (?): “Amiga, pra que é que você quer um magote de pererecas? Basta uma!”. As duas riram. Lorotaram um pouco mais. Despediram-se. Jandira encolheu-se na cama. Cobriu-se. E rezou para que as rãs ficassem onde estavam.
O sábado também amanheceu chuvoso. Ao acordar, ela acendeu a luz. As rãs não estavam nas paredes. Estariam no banheiro? Estariam no chão, nos chinelos? Sentando-se na cama, ela olhou o par de chinelos. As rãs não estavam ali. Jandira fez a costumeira oração matinal. Desceu da cama. Calçou os chinelos. Quando ia dar o primeiro passo, uma rã pulou em seu pé esquerdo. Ela deu um grito, que deve ter assustado a metade do condomínio. Caiu na cama, a rã agarrada ao pé. Sacudiu o pé com veemência. A rã não se moveu. Aquela coisa fria grudada em sua pele quase a fez desmaiar. Criou coragem. Lembrou que seu pai dizia: “Em cima de medo, coragem!”. Ela não tinha medo. Tinha nojo. Levantou-se. A rã ainda estava lá. Curvou-se e, rapidamente, tentou agarrar a rã, que pulou para os seios, depois para a cabeça e foi-se embora, saltitando, saltitando até agarrar-se na parede, ao lado da porta do banheiro.
Refeita do susto e do nojo, ela se deixou cair na cama. Uma casa nova também tinha das suas. Nada na vida era perfeito. Jandira não tinha fazendas de cacau. Não tinha fazendas de gado. Tinha apenas uma vida decente. E, agora, tinha suas novas visitas. As rãs. Nojentas, sim, mas inofensivas. Não lhe fariam mal algum. O inverno parecia mesmo ter chegado. Ela ouviria muitas vezes, na casa nova, a música da chuva tilintando no telhado. O seu coração era livre, como livres eram as pererecas saltitantes, que vinham sem marcar hora ou sem ser chamadas. E, livres, ir-se-iam embora, quando bem quisessem. Naquele sábado, a chuva continuaria cantando. E ela ouviria, muitas vezes, Louis Armstrong interpretando “Wonderful World”. Sua canção preferida. Lembranças... Lembranças...
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 31/05 e 1º/06 de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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