Aracaju (SE), 02 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 07 de junho de 2015

O choro de Mariana :: Por José Lima Santana

Mariana chorou o grande chora de sua vida, naquela tarde de setembro. O local era a pista de treino da fazenda do tio de seu namorado. No chão, Pablo Milk estava imóvel. Alvoroço na pequena plateia, que assistia aos treinos. Dali a duas semanas seria o momento da afirmação de seu namorado, momento de fazer bonito na pista de vaquejada, para a derrubada de bois, na faixa traçada para isso. O primo dele, Marquinhos, este, sim, peão de nascimento, como o pai e o avô, era seu parceiro. Filho de fazendeiro, que fazendeiro se tornou aos vinte e poucos anos de idade, claro, com um bom empurrão do pai. Largara a faculdade no segundo período de Arquitetura, para dedicar-se à vida no campo. Já o namorado de Mariana, também filho de fazendeiro, era estudante de Ciências da Computação, que ela conhecera no Odontofest, dois anos atrás. Por sua vez, ela estudava Direito.

A preocupação foi geral. Alguns dos assistentes pularam da cerca em que estavam tomando assentos nas tábuas. Procuraram avaliar de perto a situação de Pablo Milk. Para Totoinho, vaqueiro-gerente com muitos anos de labuta na fazenda São Lourenço, Pablo estava morto. E ele gritou a plenos pulmões: “O Pablo morreu!”. Foi naquele momento que Mariana deixou escapar um lancinante grito de dor. E o choro compulsivo se seguiu. Que terrível instante! Que tarde tenebrosa haveria de ser aquela! Uma tarde para ser esquecida, se ela pudesse esquecer. Não haveria de ser fácil.

Tereza Rachel, irmã de seu namorado, a amparou, também chorando. Mariana desvencilhou-se e correu ao encontro do namorado, embora o novilho nelore estivesse solto na pista. Ela não teve tempo nem tino de perceber o bovino. O namorado de Mariana era o seu primeiro namorado sério. Os dois anteriores foram do tempo do colégio, namoricos de adolescentes, que não criaram raízes nem deixaram saudades. Com o atual, tudo era diferente. Ligaram-se um ao outro como carne e unha. De um lado, para desespero de Vinícius, seu colega de sala de aula, que era louquinho por ela. Do outro lado, para Cíntia, ex-namorada dele, com quem tinha rompido uns oito meses antes de conhecer Mariana, naquela noite de festa e fantasia. Mariana estava vestida de fada cintilante, acompanhada por primas e amigos. Ele vestia-se de cowboy estilizado. Refletia na fantasia uma parte de sua própria vida, dedicada que era às vaquejadas desde menino, como o pai, o tio e o primo mais velho, com quem corria, ora fazendo fita para o primo, ora o primo fazendo fita para ele.

A morte de Pablo Milk era o fim do sonho de vencer a vaquejada em Batalha, nas Alagoas, para a qual o namorado se preparara como nunca. Já tinha corrido em várias vaquejadas com alguns prêmios conquistados, inclusive dois primeiros lugares. Corria desde cedo. O primeiro prêmio viera aos quinze anos, correndo com veteranos e campeões. Ele tinha o dom de montar cavalos e derrubar bois. Tinha uma técnica invejável, para colocar-se atrás do boi, na distância certa, de jogar o corpo para o lado, com firmeza e ligeireza, a fim de agarrar no rabo do bicho e derrubá-lo no espaço da faixa onde, caindo o boi, o locutor gritava: “Valeu o boi!”. E as palmas se seguiam.
Naquela tarde fatídica, o fogo do sol pareceu esmorecer no céu. Desaqueceu. Ainda não eram quatro horas. Era como se o sol compartilhasse a dor de Mariana, que, na pista, abraçou o namorado, aumentando o choro. Já era um pranto desesperado. Ela nunca fora ligada ao tipo de esporte que o namorado praticava. Tinha mesmo aversão aos esportes que envolviam animais, como rodeios e vaquejadas. Touradas? Nem pensar. Numa viagem à Espanha com os pais e outros parentes, há cinco anos, recusara-se ir à Plaza de Toros. Ficara no hotel, sozinha. Não gostava de música country ou sertaneja. Nem via com bons olhos a indumentária dos cowboys, estilizados ou não. Isso até conhecer o namorado naquela noite em que a fada despertou a atenção do cowboy e este a seduziu. O cowboy moreno claro, de olhos verdes a levara a nocaute. Diga-se o mesmo dele em face da fada cintilante, com seu talhe bem moldado. Lindo corpo, belo rosto, olhos e cabelos castanhos escuros, sorriso que falava por si. Um encanto de garota. Do tipo de deixar um homem arreado dos quatro pneus, como se dizia no vulgo e no passado. Os dois formavam um belíssimo par. E estavam juntos, sem querelas, desde aquela noite de festa. Eram felizes. Davam prova disso, um ao outro.

Mariana e o namorado tinham programado a viagem a Batalha. Com eles iriam os pais dele, a irmã, o primo, o pai deste e Totoinho, que era uma espécie de técnico dos dois jovens vaqueiros, ele que, no passado, também fora derrubador de bois em pistas de vários estados do Nordeste. Ganhador de muitos prêmios.
Naquele tarde, o namorado de Mariana fazia os últimos preparativos para enfrentar a pista em Batalha. A secura do rapaz por aquela competição dava-se porque, no ano anterior, ele ficara em segundo lugar por erro dos juízes, fato constatado e comentado por todos os conhecedores do esporte, que ali estiveram durante toda a competição. O declarado vencedor foi o filho de um senador alagoano. Que erro!

Não seria possível disputar e vencer naquele ano. Fora-se o sonho. O choro compulsivo de Mariana tinha sentido. Ela chorava por causa de seu namorado, do jovem que, em dois anos, só lhe propiciara momentos de felicidade. O caráter, a dedicação e o respeito dele para com ela eram tudo que uma garota poderia pretender. Ela confiava na caminhada que os dois estavam empreendendo e que tinha tudo para continuar daquele jeito. Ambos eram dedicados aos estudos. Eles haveriam de ter, em suas respectivas profissões, o sucesso almejado. Ela estagiava em um grande escritório de advocacia. Era elogiada pelo advogado-chefe e professor. O namorado trabalhava na área de informática, como programador de uma entidade federal. Passara no concurso em primeiro lugar.

Tarde terrível aquela. Mariana foi consolada. Um abraço forte, carinhoso. Depois, beijos em suas faces molhadas por lágrimas que continuavam a descer. O namorado, Paulo César, a consolou com a ternura tão própria dos homens que, viris, não se entregam ao machismo truculento, mas à macheza que se traduz por aconchego, por presença firme e amor que se constrói passo a passo, de lado a lado, sem dominação.  

Paulo César conseguiu pular do cavalo no exato momento em que ele meteu a pata dianteira esquerda num buraco, que, sabia-se porque carga d’água estava ali, e começou a tombar. Sorte dele, que não correu o risco de ter caído sob o peso do animal. Pablo Milk era o nome do cavalo do namorado de Mariana. Era Pablo em homenagem ao próprio universitário/cowboy. E Milk em homenagem a Mariana, que tinha Leite no sobrenome. Pablo Milk morrera. Na queda, quebrara o pescoço. Paulo César não poderia participar da vaquejada em Batalha dentro de duas semanas sem o cavalo com que treinava há mais de um ano. De última hora, outro cavalo não lhe daria o mesmo rendimento. Cavalo e cavaleiro precisavam estar em sintonia. Outras vaquejadas viriam, porém. Ele consolou a namorada: “Tudo pode ir embora. Eu sinto muito perder meu cavalo e a possibilidade de ganhar em Batalha. Mas se eu tenho você a meu lado, posso renascer das cinzas”. Ainda soluçante Mariana beijou o namorado. Um beijo demorado fez os jovens corações baterem no mesmo compasso.
E o sol voltou a aquecer a Terra.

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 07 e 08 de junho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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