O engraçado enterro de Eudália :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
O enterro de Eudália: ela quase foi enterrada viva
A octogenária era igrejeira. Mas não se dava ao gosto das fruticas tão comuns no meio das carolas dali e de todos os lugares. Não era dada a fofocas. Não engolia hóstias por brincadeira. Aceitava o corpo de Jesus, ali presente na Sagrada Eucaristia. No fim da década de 1960, entrara em pânico. O velho Cônego Miguel aposentara-se. Não era muito velho, mas estava doente. Chegaram a Dores e, por conseguinte, a Cumbe, uns padres modernos. Eudália assustou-se. A Igreja estava desandada. Diziam que iriam tirar os santos dos altares. Os padres vestiam calça e camisa como homens comuns. O que era aquilo? O Papa endoidecera? Um furacão varria a Igreja de Cristo. Entretanto, ela ficaria na Igreja, para a missa, quando tivesse missa. Rezaria para que as coisas retomassem seu lugar.
Um dia, o padre apresentou ao povo um seminarista, que deveria passar uns dias ali no Cumbe, em missão pastoral. E onde se viu seminarista, que nem padre era, fazer missão? Missão, santa missão, ela vira, em menina, no Poço, pregada por uns frades vindos de Pernambuco. Ela viu gente amancebada cair de joelhos diante dos frades. Viu moça com os tampos arrancados se sujeitarem ante a pregação poderosa do mais velho dos capuchinhos. Viu uma velha desdentada, lá da Guia, estrebuchar e rolar por terra, cheirando a enxofre. O diabo entrara nela, mas os frades deram conta dele, que se soverteu nas profundas. Viu muita coisa. Agora, chegava ali um seminarista varapau, magricela, com pintas de pregador. Hum! Eudália não botava fiança naquele tipo. Jesus que a perdoasse!
O padre queria que uma família acolhesse o seminarista. Ninguém se dispôs. Mas, alguém, alguma frutiqueira, com certeza, dera com a língua nos dentes e a indicara ao padre, para dar guarida ao seminarista. Mal Eudália chegara à sua casa, após a missa, ouviu o toc-toc na porta. Era o padre acompanhado do varapau. Ah, não! Ela era sozinha. Poderia dar as três refeições ao rapaz. Porém, não lhe poderia dar pernoite. O que haveriam de dizer a gentalha dali, ao saber que uma mulher sozinha, donzela de respeito, dera dormida a um homem? Fosse ele seminarista ou não. Não convinha. Arranjasse onde dormir, que a boia ela lhe daria de bom grado. O padre quis insistir, mas ela não lhe deu trela. Comida, sim. Dormida, não. Eudália era mulher de uma só palavra. Com ela era sim, sim e não, não.
Bem, o seminarista arranjou-se na sacristia da Igreja. Um banho por dia ele poderia tomar na casa do prefeito. A primeira-dama lhe favoreceria no banho. Apenas um. Afinal, naquele tempo a cidade ainda não tinha água encanada. Nem Dores a tinha. A primeira refeição do tal seminarista seria o jantar. Eudália marcou com o dito cujo para as 6 horas da noite. Não queria um homem em sua casa, tarde da noite. Na pouca conversa que tiveram, ele disse que era de Poço Redondo. E que seus pais eram da Guia, mas moravam em Aracaju. Aquilo, contudo, não impressionou Eudália. Fosse ver alguém lhe dera a informação de que ela era do Poço, que tinha ido à santa missão, na Guia, quando menina. Tinha gente dali de Cumbe que sabia daquelas coisas sobre sua vida. O varapau deveria estar a fim de lhe convencer a dar-lhe pousada. Jamais! Com guia ou sem guia, ele só teria comida. O mais não seria com ela.
O seminarista fez umas reuniões, na Igreja. Disse um bocado de bolodório. Puxou ladainhas e rezas. Ora, para quem só tinha missa uma vez por mês, não foi nada mal. Teve algum proveito. Pouco, a bem da verdade, mas teve.
Passaram-se os anos. Eudália, doente, bateu as botas. Ou melhor, os tamancos. Morreu em 1975. Cumbe ainda não era Paróquia. Continuava como Curato da Paróquia de Dores, cujo pároco provisório era exatamente, há apenas dois dias, aquele seminarista varapau, agora padre, que já tinha passado por duas outras Freguesias. Um sobrinho da defunta fresca, que viera de Glória com o caixão, queria a celebração da missa de corpo presente. Afinal, a tia falecida era igrejeira e formava fila na Legião de Maria. Sua alma haveria de ficar satisfeita com a missa. Mandaram buscar o padre de Dores. Oh, surpresa para ele! Ali espichada no caixão barato, embora encarquilhada, estava Eudália, a mesma que, fazia tempo, lhe enchera o bucho por uma semana, três vezes ao dia, além das merendas no intervalo entre as refeições. Como o mundo dava voltas! Celebrada a missa, o padre acompanhou o cortejo fúnebre até o cemitério, afastado da cidade. O sol a pino, embora já fossem cinco da tarde.
Quando o féretro deixou a avenida calçada e entrou no caminho de chão batido, eis que um dos carregadores do meio trupicou numa pedra agarrada ao chão, com ele levando o carregador da dianteira. E lá se foi Eudália. Ao bater no chão, a tampa do caixão se abriu. Espanto. A “defunta” abriu os olhos e bocejou. Alvoroço. Susto geral. Teve gente que correu. O padre, também assustado, acercou-se do caixão. Benzeu-se. Eudália não podia entender o que estava acontecendo, mas reconheceu o antigo seminarista. E balbuciou: “Tá de volta?”. Pois foi. Eudália teve um acesso de catalepsia, doença que aparentemente faz a pessoa adormecer como se estivesse morta. Ataca, dentre outras, pessoas com distúrbios do sono. Eudália sofria disso. Ela, porém, estava vivinha da silva. E só morreria, de verdade, cinco anos depois, aos oitenta e cinco. Muitas outras vezes, o antigo seminarista haveria de encher o bucho com a comida de Eudália. Aliás, para ela, barriga de padre era cemitério de galinha.
Depois de tudo serenado, o sobrinho da quase defunta tentou devolver o caixão à funerária, em Glória, mas o dono alegou que o pijama de madeira já tinha sido usado. E não poderia ser aceito de volta. Os leitores acham que ele tinha razão?
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição 28 e 29 de junho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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