Dona Vilma e a mandioca de “seu” Davi :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
“Seu” Davi era um sujeito que envelhecia sem que o coração perdesse a jovialidade. Era do tipo “avozão”, sempre devotado aos netos, que formavam um “cardume”. Também pudera, pois ele era pai de nove filhos, sem contar os três que morreram em tenra idade, como acontecia muito naqueles tempos. Bom patrão, misturado no serviço com as mulheres que para ele trabalhavam. Homem de prosa fácil. Brincalhão como ele só.
Dona Vilma criou a família, entrando dia e saindo dia, labutando nas casas de farinha. Além do dinheirinho semanal, ganhava três cuias de farinha e os beijus que podia fazer no sábado: de tapioca, misturado, de amendoim, de coco com açúcar. Os meninos adoravam. O marido foi-se embora com uma catraia sem-vergonha e nunca deu notícia. Também não precisava. Ela soube criar os quatro filhos, três meninos e uma menina. Todos ajustados na vida. Ela, todavia, não conhecia tempo ruim. Também, tempo pior não poderia haver do que uma vida inteira metida nas farinhadas, raspando, servando no caititu, rodando no rodete, botando e tirando prensa, peneirando e mexendo no rodo, para uma mulher sem marido e com quatro filhos para dar de um tudo, em ordem de pobre. Apesar de toda luta, Dona Vilma era uma mulher de bom humor. Sorridente. Contadora de lérias. “Ô Dona Vilma, como vai a mandioca de “seu” Davi?”, perguntava Edelzuita, colega de farinhada. “E eu lá sei, minha filha! Pergunte a Dona Sinhá. Ela é quem deve saber da mandioca do marido. A única coisa que eu sei é ter que raspar a danada”. E ria à larga. Farinhadas... Ah, comer um bocado de farinha mole com sal e pimenta! Ela gostava por demais. Para quem não sabe, farinha mole era a farinha que estava sendo mexida no forno antes de ficar seca. A massa peneirada ia sendo revolvida no forno e secando aos poucos até ficar no ponto. No meio termo estava a chamada farinha mole. Comer muito, porém, era ter dor de barriga, na certa.
Além das farinhadas, Dona Vilma ainda tinha que cuidar das plantações que fazia no quintal de meia tarefa de terra. Ali ela semeava macaxeira e feijão, milho e fava, além de hortaliças. Para tanto, na época apropriada para tal, ela se virava no domingo e na segunda-feira, dia da feira semanal e, por isso mesmo, dia de folga nas farinhadas. Como dizia a vizinhança, ela trabalhava como um homem. Aliás, muito mais do que muitos homens. A barra de sua saia valia mais do que muitas bocas de calças. De verdade. Mulher daquele tipo jamais desceria ao volume morto. Não, ela não!
Um dia, “seu” Davi comprou sem ver uma partida de mandioca. Comprou-a de Maurício de Filomena, sujeito ladino, que enfiou folhas nas ventas do comprador. E “seu” Davi não era homem de se deixar levar pelo gogó de ninguém. Porém, até parecia que o tal Maurício tinha benzido o farinheiro com ramo de vassourinha salpicado em água de pó de asa de morcego. “Seu” Davi comprou sem ver. Comprou mandioca plantada em brejo, boa parte imersa em água ferrosa. Dinheiro perdido. “Quem compra o que não vê, dor de cabeça há de ter”, dizia Dona Vilma. “Seu” Davi mandou arrancar a mandioca que comprou sem ver. Pela manhã, ele teve que ir ao povoado Saco Grande em visita a um primo arruinado da saúde. Ao retornar para casa, à tarde, foi ver a mandioca comprada a Maurício de Filomena. Na casa de farinha estava Dona Sinhá, que lhe disse: “Davi, você tá mesmo de cabeça amolengada. A sua mandioca num tem prestança. Tá podre!”. E ele, espirituoso como sempre: “Depois de tanto tempo, o que era que você ainda queria Sinhá?”. As seis mulheres que se encontravam no trabalho, dentre elas Dona Vilma, caíram na gargalhada. “Seu” Davi as acompanhou na galhofa. E a pobre da Dona Sinhá ficou sem terra nos pés, vermelha como pimenta malagueta madura. Não se deu conta do que disse até ouvir o estrondo da gargalhada geral. Trabalhar com mandioca podia ser duro, mas era divertido.
Uma coisa era certa: Dona Vilma sabia muito bem, diferentemente de certas pessoas, que não vivem na planície, mas, sim, no planalto, que a mandioca, embora de grande utilidade, não era, e nunca haveria de ser, uma das maiores conquistas do Brasil, como, dias desses, se disse por aí. Mandioca... Uma das maiores conquistas... Assim seria dilmais. Ou melhor, demais. Estão metendo a mandioca onde não se deveria metê-la. Ô sofrência!
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição 05 e 06 de julho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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