Encontro de amigos do facebook :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Eles se conheceram, sim, no facebook. Ela, fisioterapeuta. Morena, bonita, corpo bem delineado, sorriso de flor que se abria na madrugada para beber do orvalho e explodir em cor e perfume sob o brilho da manhã. Ela sempre curtia as postagens dele. Poemas e pequenos textos em prosa. Alto astral, como diziam alguns por aí, nesse mundo de redes sociais que se alastravam. Quem estava fora delas, estava fora do mundo. Diziam. Havia, porém, quem disso discordasse. O mundo, para estes, era muito mais do que redes sociais. Muito, muito mais. Ela sempre comentava as postagens dele. Comentários curtos, mas graciosos. Comentários de amiga recente, que parecia se achegar passo a passo. Outra amiga a indicara para ele adicionar. Coisas do facebook. Desde que fora adicionada, ela o curtia semana após semana. Ele postava um texto em prosa todo fim de semana. Ao longo de algumas semanas, apareciam outros textos, poesia ou prosa. Ela curtia todos eles. E comentava um por um.
Ele... Bem, ele era um misto de escritor bissexto, desses que teimavam em chamar atenção para um talento que, deveras, não o possuía, apesar do reconhecido esforço, além de ser profissional liberal. Um sujeito simples, que, fisicamente, não chamava a atenção de ninguém, nem se destacaria se ao seu lado estivesse apenas mais um sujeito ou um milhão de sujeitos. Não era nenhum deus grego. Nem mesmo um semideus. Nem... Nem nada do tipo. Também com a Grécia quebrada como está...! Mensagem vinha, mensagem ia, e eis que ela deixou escapar: “A gente ainda não se conhece... Quem sabe se a gente não se esbarra por aí...”. Era como se ele esperasse por aquilo desde os tempos pré-socráticos. E devolveu em mensagem reservada: “Pois é. Quem sabe se a gente não se esbarra por aí, no shopping, na paria... A gente já conhece a cara um do outro, das fotos daqui do facebook...”. E ela: “Quem sabe... Hehehehe...”.
Os dias se passaram. Os meses se passaram. O inverno chegou. O inverno esteve a meio caminho, preparando-se para, mais tarde, ir-se embora. Era um sábado de céu manchado de nuvens. Não chovia. Nem fazia sol. Dia a meio termo. A manhã para ela passou a passos de cágado. Em tempo de crise, de dinheiro curto para muitos, embora não para ela, mesmo sabendo-se que sobrar muito não sobrava, uma boa ajeitada nos cabelos era possível fazer em casa mesmo. Uma boa escovada. O penteado de costume. Uma maquiagem discreta. O perfume preferencial. Roupa? A casual. Era sábado. Um sábado comum dentre tantos sábados comuns. Nada de especial a esperava. Tão bom seria, contudo, se rolasse algo não usual. Seria tão bom! Almoço em casa. À tarde, daria uma volta no Shopping. Talvez uma sessão de cinema. Uma colega de trabalho, recentemente separada, sem filhos, seria a sua companhia. O problema era que a amiga gostava de filmes bobinhos, tipo água açucarada com uma leve pitada de sumo de limão, apenas para dar um gostinho sem gosto. Quanto a ela, sua preferência por filmes era daqueles arrebatadores. Dos grandes dramas.
O sábado dele foi só um pouquinho mais agitado. Uma ida ao mercado para comprar uns trecos. Passou num bar de esquina para cumprimentar alguns amigos e degustar um caldinho de sururu. Na verdade, degustou três. Dois de sururu e um de mocotó. Beber? Não bebia. Só sucos e água de coco. Estava bem servido. Almoçou um pouco mais tarde que de costume. Um peixinho ao molho de camarão. Não tinha nada de programado para a tarde. Haveria de ler um bom livro dentre os três que tinha comprado ultimamente. Escreveria um pouco? Deixasse a tarde rolar. Súbito, decidiu ir ao Shopping verificar os preços de um HD externo. Tarde de nuvens no céu.
A amiga dela entrou numa loja. Recentemente separada, o marido a deixara por uma antiga namorada, igualmente separada. Quanta separação! Talvez a amiga estivesse numa fase de compulsão. Precisava comprar e comprar. Enquanto a amiga revolvia peças e coisas, a morena dirigiu-se ao quiosque dos sorvetes. Pediu um dos grandes. Uma casquinha de quatro bolas, sortidas. Uma delícia! Verdadeiro maná dos céus! Retornando ao encontro da amiga consumidora, a morena deu um esbarrão numa quina. Um encontrão com um homem. Susto. Balbuciou um pedido de desculpa, que, inopinadamente, também veio da boca daquele homem. O sorvete espanou na camisa do homem. Camisa branca manchada de sorvete colorido. Reconheceram-se. Ela disse: “Surpresa!”. Ele disse: “Surpresa. Kkkkk...”. Um sorriso sem graça, misto realmente de surpresa e desconforto. Cara a cara. Um olhando para o outro. Era como se estivessem petrificados. Corpo a corpo. Ele pensou em convidá-la para irem ao cinema. Para tomarem um café na livraria. Para qualquer coisa. Ela não dispensaria qualquer coisa, ali mesmo. O porte dele, como se fora um hindu salpicado com alguma coisa, fascinava-a. Não era belo. Não tinha dotes físicos atraentes como muitas mulheres prefeririam. Tinha o olhar profundo. O sorriso discreto. E os textos que ela tanto gostava... Num átimo, ela se lembrou do poema “Ardência”: “O corpo arde e fascina como a estrela da manhã...”. E do final do conto “Brancas Areias”: “Eu caminhava por areias finas e brancas, à procura de suas pegadas, mas o vento já as tinha apagado. Meus passos perdidos em busca de suas perdidas pegadas. Esperanças, talvez, perdidas. Brancas areias que eu jamais esqueceria. Desalento”.
Ali se encontraram os dois amigos do facebook. Ele e ela. Enfim, se esbarraram. Ambos almejaram aquele encontro. Ambos queriam que ele durasse. Eles teriam muito o quê conversar. Quem sabia se... Ele pensou mil coisas. Mil coisas ela pensou. Cara a cara. Corpo a corpo. Pareciam petrificados. Grudados. “Quem sabe se a gente não se esbarra por aí...”. Ela dissera isso. Ele almejara isso. E ali estavam. Hálito puro. Ele o sentia. Perfume discreto. Olho no olho. Sorriso atravessando sorriso. Corações prestes a voarem, a pularem das caixas torácicas, a darem-se mãos imagináveis e saírem por aí.
De repente, um grito. Outro ainda mais forte. A amiga dela vinha apressada, quase correndo. O telefone ao ouvido. “Lindinha!!!”, exclamou a amiga. “Aconteceu uma desgraça. Um carro acaba de atropelar Júlio César. Minha mãe está desesperada. Está em prantos. Temos que ir”.
E elas se foram. Não houve tempo para despedidas. Nem para marcar um encontro. Marcariam pelo facebook? Bem. Ele teria que limpar a camisa manchada pelo sorvete. Passou a mão. Levou o dedo à boca. Jabuticaba! Era o seu sorvete preferido. A sua fruta predileta, desde que ele era menino, no quintal da casa dos avós, lá no interior. Jabuticaba...! O mais doce dos sabores. Para ele.
Depois, ele ficou sabendo, por uma mensagem que ela mandou via facebook, que o Júlio César atropelado era o cãozinho poodle da mãe de sua amiga. Outros sábados viriam. Ah, vida...!
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição 19 e 20 de julho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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