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Aracaju (SE), 27 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 25 de julho de 2015

A viúva :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Maria Rosa do finado Zé Julião, seu defunto marido, que se foi depois de ter comido uns torresmos com tapioca e refresco de cajá, estava de novo casamento marcado. Ela ainda era jovem, tendo viuvado aos trinta anos e há menos de três. As línguas de matraca diziam que nem bem o calor do defunto dera sinal de sumiço, a viúva já botava brasas debaixo da cama. Viúva das coisas quentes. “Potranca esperando sela”, como diria Sebinho meu primo, que tinha um linguajar politicamente incorreto, como hoje se diz. Para Dona Marinalva de “seu” Joca de Maria de Fulô, porém, Maria Rosa estava certa. Defunto que se foi não tinha mais direito a cama e mesa. Além disso, Maria Rosa não tinha filhos. Zé Julião fora, antes do casamento, coiceado por uma vaca, enquanto tirava leite, e o coice atingira suas partes fracas. Coitado! Daí, para alguns, ele não poderia embuchar mulher. A viúva, uma vez casada de novo, poderia provar ou não o dizer do povo, ou seja, que os balangandãs do finado não valiam mesmo nada.
    
O noivo de Maria Rosa era mais novo do que ela. Tinha vinte e dois anos. Tratava-se de Marcos Fagundes, filho de Pedrinho do Gravatá, vendedor de carne de bode no Talho de Carnes da cidade, às segundas-feiras. A mãe do noivo, Germana de Almerinda, era prima de Maria Rosa, lá por trás das nuvens. Por conta desse parentesco distante, houve quem alardeasse que o casamento era de acerto, pois a viúva ficara bem do seu, com boa casa, bom sítio e uma pequena propriedade de criar gado bovino. Dizia-se até que tinha bons trocados no Banco. Disso, contudo, provas eu não dou, embora não tenha motivo para duvidar. Já o noivo, que, antes, andara enrabichado para o lado de Gegeca de Carlinhos Galego, era motorista da Prefeitura Municipal. Ou seja, mal começava a vida. Mas, não tinha nada a ver. Quando o amor chegava com flechas certeiras, não havia nada que o impedisse de alvejar o alvo mirado. Com ou sem acerto.
    
O certo era que os preparativos para o casório estavam adiantados. Casamento de viúva não era casamento de moça virgem, para ser de vestido branco, de véu e grinalda enfeitada com flores de laranjeira. Maria Rosa escolhera um vestido simples, cor de marfim, comprado em Aracaju. Não haveria guardas de honra, mas apenas uma porta alianças, que era sobrinha da viúva-noiva. Ela era uma mulher bem apanhada, de corpo retilíneo, rosto formoso, pele amorenada e bem cuidada, olhos vivos e negros, como negros eram os longos cabelos, que ela os tinha à altura da cintura. O noivo, Marcos, era alto, forte, rosto sardento, saudável, zagueiro do Risca Faca Futebol Clube. E não era má pessoa. Pelo contrário. Motorista da rural da Prefeitura, ele se mostrava muito prestativo. Não tinha dia nem hora para atender as pessoas encaminhadas pelo prefeito, carentes de viajar para ali ou para acolá. Possivelmente, daria um bom marido. A julgar pela idade, ele haveria de tacar fogo na alcova de Maria Rosa. E esperava-se que lhe desse os filhos que Zé Julião não pôde dar.
    
O casamento ocorreu num sábado de muito calor. Até na hora da celebração, por volta das dezenove horas, o suor encharcava o padre, os noivos e todos os outros presentes na igreja. O noivo pareceu sentir-se mal na hora de dizer o “sim”. Disse-o sufocado. O “sim” saiu com voz ofegante. Afora o padre e a noiva, ninguém ouviu. Marcos afrouxou o nó da gravata. Precisava respirar. Em bicas, o suor escorria em seu rosto. O padre sentiu que havia algo estranho e apressou a cerimônia. Papéis assinados e fotos tiradas, restava a recepção aos convidados na casa do novo casal. Marcos sentiu-se melhor. O sufoco parecia ter sido ocasionado pela emoção. Não era raro alguns noivos emocionarem-se mais do que as noivas, na hora “h”. Havia até os que choravam. E quem disse que choro era algo exclusivo de mulheres? Afinal, todo mundo tinha e tem lágrimas nos olhos, essa secreção límpida, incolor e salgada, produzida pelas glândulas lacrimais, que limpa e umidifica a conjuntiva e a córnea.
    
Os convivas comiam e bebiam com grande animação. O prefeito, padrinho do noivo, era dos mais animados. Tirava algumas pilhérias pesadas pelo fato de que Marcos Fagundes deveria mostrar que não seria outro Zé Julião, galo de ovo goro, que não conseguiu engravidar a mulher. Inconveniências à parte, tudo corria na mais perfeita ordem. Comida e bebida não haveriam de faltar. Os pais do recém-casado demonstravam grande alegria. Um rapazola, primo de Marcos Fagundes, de apelido Bagatela, filho de Amâncio de Mariquinhas, saltou com esta gaiatice: “Não vá morrer antes de fazer um menino, ouviu, Marcos? Senão já tem quem ocupe seu lugar. Euzinho”. Todos riram à larga.
    
O calor definitivamente tinha invadido a noite. Nenhuma brisa soprava. A casa, porém, era bastante arejada. Dava para suportar a quentura da noite de janeiro. O verão estava no auge. Muitas formações de trovoadas, que não deveriam demorar. Maria Rosa recebia cumprimentos, ouvia cochichos das amigas, mas não tirava o rabo do olho do novo marido. Oxalá, todos se fossem. Quanto a Marcos, que tinha pela frente uma semana de descanso, para deleitar-se com a lua de mel, estava numa roda de conversa em que o prefeito, ao invés do novo dono da casa, era a figura principal. Prefeito era prefeito. Enfim, autoridade dentro e fora da Prefeitura. Besta era quem dizia que “era melhor ser corno do que ser prefeito”. Era nada!
    
Finalmente, festa acabada, tabaréu na estrada. Marcos e Maria Rosa estavam sós. A noite seria deles. Ou melhor, a madrugada, pois fecharam a porta pouco depois da meia-noite. No quarto, o casal que só teve cinco meses de namoro, preparava-se para a primeira noite de amor, pois o namoro correra no maior respeito, como convinha a pessoas de boas famílias e com as melhores intenções. Naquele tempo ainda era assim. Estou falando de 1961. Maria Rosa fora ao banheiro arrumar-se para o marido forte e em ponto de bala. Demorou-se o tempo suficiente para ouvir um barulho, um baque e um grito lancinante. Correu para o quarto. Encontrou o marido morto, fulminado por um ataque do coração. Mal se casara de novo, de novo viuvara. O mal súbito sentido na igreja retornou mortal, para levar Marcos Fagundes, prestimoso motorista da Prefeitura, à cidade de pés juntos. Morte sentida pelo povo e, ainda mais sentida, em face do jeito como ocorrera. A bem dizer, Marcos era um menino. Outra vez, Maria Rosa cobriu-se de preto, como era próprio a uma viúva naqueles idos.
    
Um ano depois, a viúva tornaria a se casar. Exatamente com aquele rapazola,  Bagatela, primo do finado Marcos, que soltara a gaiatice durante a recepção após o segundo casamento de Maria Rosa. Viúva que não baixava o facho... “Você, cara, tem coragem de mamar em onça”, brincavam os amigos dele. “Casar com uma viúva dessas? Só sendo muito macho ou muito doido”. Casaram-se, sim. Ela beirando os 35 e ele mal tendo chegado aos 20 anos. Bagatela não morreria, como o primo Marcos. Nem como Zé Julião, comedor de torresmo com tapioca e refresco de cajá. Um veneno. O casal teve tempo para botar no mundo três filhos, um homem e duas mulheres. O filho, que fora estudar em Minas Gerais, lá morando com uma tia, tornou-se padre e, depois, bispo. E as filhas deram aos avós quase uma dezena de netos. Maria Rosa ficaria viúva pela terceira vez, aos 75 anos. E casou 2 anos depois com um sargento reformado de 60 anos. Na última terça-feira, o sargento fez a viagem definitiva. Meus pêsames a Maria Rosa. Ela vai fazer 87 anos em outubro. Será que a viúva ainda vai querer chamego? Alguém duvida?

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição 26 e 27 de julho de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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