Uma casa para Tininha :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Jos Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Naquele inverno, o de 1968, eu tinha treze anos. Papai tinha acabado de comprar a Caiçara, pequena propriedade rural, bem perto da cidade, com água corrente e boa terra. No riacho, debaixo das ingazeiras, havia piau gordo, um tipo de peixe cheio de espinhas, e camarão de água doce em boa quantidade. O inverno foi muito chuvoso. Por todo canto, os riachos botaram cheias estupendas. Num fim de tarde, papai quase morreu afogado ao tentar atravessar o riacho do Mulungu, afluente do rio Sergipe, que corta o território de Dores, e que também é cortado, no lado oposto, pelo rio Japaratuba. Riachos em Dores? São muitos. E já foram bem taludos. Hoje, são tísicos. Já não botam grandes cheias nos invernos. As matas ciliares há muito se foram. Os minadouros encontram-se a descoberto e vão secando. Uma lástima!
A casinha de taipa de Tininha, filha de “seu” Otacílio do finado Zeca Molambo, antigo feitor da fazenda Candeias do coronel Francisco Azevedo Porto, ruiu. Veio abaixo, parede por parede. A cumeeira cedeu. Madeira branca, ruim. A sorte de Tininha e de seus cinco filhos foi que ela deixou o casebre assim que a primeira parece veio abaixo. Encontrou abrigo na casa de farinha de Cecílio, primo de sua falecida mãe. Tininha era viúva. O marido, Pedro de Maria Gorda, tinha sido assassinado numa cachaçada pros lados do Boqueirão, há uns dois anos. Morte por causa besta, ou, como diriam os advogados, por motivo fútil. Mas o assassino era filho de um rico fazendeiro de Divina Pastora, dono de plantações de cana de açúcar, chefe político e o escambau. Saiu livre do júri. Tininha ficou sem nada, a não ser o casebre testa de bode e os cinco filhos. Ela vivia de lavar roupas no açude da cidade, como muitas mulheres pobres o faziam, para ganhar o sustento. Como dizia a cantiga infantil, ela era pobre de marré-marré-marré.
A casa de farinha não era um local apropriado para abrigar Tininha e seus cinco filhos, todos de cobrir com um cesto. Pequenos. Pobres tinham filhos como preás, um atrás do outro, sem descanso. Era a vida. Precisava-se dar um jeito na vida de Tininha, assim que as chuvas dessem uma trégua. De setembro em diante.
Enfim, chegou o tempo das estiagens. Os ventos sopraram para enxugar a terra. Com o vento vinha o frio, que, logo, ia-se embora, no máximo, em meados de setembro. Era tempo, pois, de construir a nova casa de Tininha. Os vizinhos cuidaram de arranjar a madeira necessária. Na Caiçara de papai foram achadas boas peças para a cumeeira, demais madeiramentos e caibros. Madeira para os enchimentos e ripas foi tirada da Caiçara de Oscar Andrade. O arame para amarrar as varas transversais aos enchimentos foi dado por Edinaldo da bodega. De início, numa terça-feira, a casa foi levantada. A madeira vertical e horizontal foi posta. O pagamento do carpinteiro, das portas e das tintas estava garantido como adiante se verá. Auxiliares do carpinteiro eram vizinhos sem remuneração. Na terça-feira da semana seguinte, mais de cinquenta homens, mulheres e meninos acorreram para a tapagem. O barro foi tirado do barreiro de Zefinha de Duda do Gonçalão. Selão do bom. Grosso, avermelhado. Não podia faltar uma cachacinha para boas bicadas. Era assim mesmo que ocorria numa tapagem de casa, que, a bem da verdade, era uma festa. Yeyé de tia Joana encarregar-se-ia de rebocar a casa com a ajuda de alguns. Como a casa era pequena, em dois dias, o serviço seria completado. Uma demão de cal e tabatinga seria dada. Portas e janelas seriam pintadas. O dinheiro para isso, para o carpinteiro e para as telhas viera de um leilão que foi feito na porta da bodega de Edinaldo, três semanas antes. Eu fui o presidente da mesa do leilão, encarregado de anotar os valores dos prêmios arrematados. Como presidente da mesa, sinceramente, eu me achava. Que coisa mais tola! Mas, eu só tinha treze anos. Há de se compreender. A partir dali e por causa das contas bem feitas, eu fui presidente de várias mesas de leilões.
O levantamento da casa foi feito sem nenhum problema. E sem problemas a mesma foi caiada e barrada a tabatinga. Ficou um mimo. Eram somente quatro pequenos compartimentos. Casa de pobres, mas que tanto bem haveria de fazer a Tininha e seus cinco filhinhos. Maria de Nou, prestativa vizinha de Tininha, e amiga de minha mãe, que fazia para mim beijus misturados, numa composição de tapioca e massa prensada e peneirada, que eu gostava de comer com leite, admirou-se da rapidez com que a casa de Tininha ficou pronta e exclamou para mamãe, numa linguagem que lhe era peculiar: “Ô Pastora, tu viu que ligeireza na casinha de Tininha? Num instante, o povo levantou-la, tapou-la, rebocou-la, caiou-la, barrou-la e pintou-la”. Foi assim mesmo. Houve um tempo em que a solidariedade era uma espécie de “vício” entre muitas pessoas.
Quando a casinha ficou pronta, apareceu, no sábado à tarde, o vereador Zezito Costa, para fazer um discurso sem pé nem cabeça. A eleição municipal estava próxima. O que ele tinha a ver com a casa de Tininha? Nada. Os vizinhos de Tininha o botaram para correr. O vereador, atônito, desequilibrou-se na bicicleta e caiu numa tulha de esterco de boi. Chico Bicudo, bêbado landrino, gritou para o vereador lambuzado: “Vereador Zezito Costa / Escorregou caiu na bosta”. Coisas da terrinha.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicação neste site autorizada pelo autor.
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