Um gringo em Borda da Mata :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Acredita-se que antigos moradores do povoado em foco tinha origem cigana. Comprovação disso não há. Todavia, não é de se descrer. Povo trabalhador, sabido nos negócios. Houve um tempo em que parte dos eleitores votava em Dores e a outra parte votava em Moita Bonita. Muitas famílias dividiam os votos. Serviam-se, assim, dos serviços prestados pelas duas Prefeituras Municipais. O povoado fica mais perto de Moita do que de Dores. Isso também não vem ao caso.
Enfim, o que é que vem ao caso? Ora, o caso em si, que passarei a contar. Eu hoje não estou para muitos rodeios, não. Vou logo ao ponto, ao calo, ao “x” da questão. Ao gargalo. Sem enrolações. Como se já não estivesse tentando enrolar.
Manhã de sábado. Fim da manhã. O sol tentava se esconder por trás de umas nuvens mais ou menos escuras. Trovoada à vista? Bom seria. Dona Marivalda de Totico de Pedro Carpina estava nos preparativos finais do almoço da família. Família grande: ela, o marido e doze filhos, de quatorze que vieram ao mundo. Dois se foram ainda no berço, como era tão comum nos tempos passados. Uma filha, a mais velha, morava fora. No fogo, um caldeirão de fava verde. Fava casta de primeira qualidade. Não faltavam quiabo e maxixe novinhos de dar gosto e abóbora jerimum enxuta, que quase parecia pedra. Caldeirão fervendo nos temperos: cebola roxa, cebolinha, coentro, hortelã, agrião, uns dentinhos de alho e duas ou três folhinhas de manjericão. Um cheirinho de dar água na boca... Ah, para acompanhar a fava verde, uma preciosidade interiorana: carne de porco frita com fígado de boi. Hum...! O caldo engrossado pelo fígado...
Como visto, a boia daquele sábado na casa de Totico era de matar de chapéu, como se dizia por ali. E o molho de malagueta? Pimenteira mimosa no oitão da casa. Muita gente não sabia o que era um bolo de fava verde enfarinhada, apertado por entre os dedos da mão e molhado no caco do molho da malagueta. Uma pessoa sadia dos intestinos comia e lambia os beiços. E depois chupava duas mangas espadas como sobremesa. Almoço real. Uma finura.
Pois foi naquele fim de manhã que bateu palmas na porta de Totico um galego bem apessoado. Sujeito da fala enrolada, falando um palavreado de difícil compreensão, como se bêbado estivesse. Não estava não. Era um gringo. Depois se saberia que o seu nome era Mister Macintosh, ou seja, Michael Murdoch Macintosh. Americano. Com o tempo, o povo o chamaria de Mista Tocha. Era o que a língua dali dava para pronunciar. O gringo fora bater à casa de Totico por indicação de um irmão deste, que com ele trabalhou na Bahia, numa empresa metida no negócio do petróleo. Tinha se mudado para Aracaju e viera dar ali na Borda da Mata, para conhecer o country do amigo José Carlos Azevedo Peixoto, que ele o chamava “Joe”, e que era o irmão de Totico. O gringo estava no Brasil há três anos. Enrolava, mas falava português. Com esforço, a comunicação fluía. Totico fez festa para o ianque. E, claro, meteu-lhe no bucho fava verde com carne frita. Porco e fígado de boi. E o texano não se fez de rogado. Já devia estar acostumado com a cozinha baiana. Comeu até se fartar. Depois, numa rede, como qualquer latino, bufou à vontade. Nada demais.
O gringo fez amizade. Fez visitas contínuas ao povoado, à casa de Totico. Ele tinha sangue saxônico, mas jeitos latinos. Mista Tocha sentiu falta de uma coisa na Borda da Mata: água encanada. Passou meses prometendo que uns conhecidos seus, metidos no governo do Estado haveriam de cuidar do assunto. Ele próprio passou a ser um interessado direto: comprou um sítio ali, na saída do povoado para Dores. Um sítio soberbo. Boa terra, árvores frutíferas à vontade, chão bom para plantar fava casta, cereal que ele passou a apreciar. Ele já passava dos trinta anos. Solteiro. Escapara de casar em Dallas. Escapara na Bahia. E continuava escapando. Porém, somente até o dia em que conheceu Estela Maria, filha mais velha de Totico, que morava em Maceió com os avós maternos e estava de férias. Estela Maria... Que morena! Olhos de faíscas. Negros e lisos cabelos que batiam na cintura. Corpo onde beleza e perfume se entrincheiravam. Cintura de violão. De violão de cordas afinadas. O gringo arrastou asas. Arrastou-se por completo. Caiu de quatro. Choramingou. Deve até ter pedido a Tio Sam que lhe valesse. Lambeu torrão de terra. Endoideceu. Enfim, a mulher para quem ele tiraria o cowboy hat.
Estela Maria tinha vinte e dois anos. Não tinha namorado em Maceió há mais de um ano. Tivera apenas um, que não passou de nuvem passageira. Sabedor dos nossos costumes, Mista Tocha pediu licença a Totico para namorar Estela Maria. Totico respondeu que daria o consentimento. Contudo, sob duas condições: que ela também o quisesse e que ele conseguisse água encanada de boa qualidade para o povoado, como o gringo prometera por meses a fio. Totico não queria fazer da filha uma moeda de troca. Queria apenas que, se fosse o caso, o genro fosse um homem de palavra. Não casaria a filha com um sujeito mentiroso, que fazia promessas vãs. Afinal, ele, Totico, não era santo de altar ou nicho, para ouvir bolodório fiado. A moça não desgostou do texano. Pelo contrário, engraçou-se. E muito. O gringo era endinheirado. Estava tomado pelos encantos do love. Em poucos dias, mandou cavar um poço artesiano e fez a encanação, numa extensão de quase mil metros. Fez um chafariz em frente à capela. Água jorrando. Os moradores felizes. Para Mista Tocha o casamento estava a caminho.
A água do poço, entretanto, deu salobra. Muito salobra. Terminadas as férias, Totico mandou Estela Maria de volta a Maceió. Chorosa, mas obediente ao pai. O gringo não lhe teria. Sem água de qualidade, não haveria namoro nem casamento. Água salobra não fazia bem aos rins. Mista Tocha vendeu o sítio. Sumiu. Teria voltado para os States?
Três anos depois, o primeiro neto de Totico nasceu no Texas, mas ele somente o conheceria aos dez anos de idade, quando a raiva que sentia da filha fujona cedeu lugar ao amor do pai e do avô.
A água de Borda da Mata, porém, continua, até hoje, escassa e de baixa qualidade. Falta alguém, gringo ou não, para resolver o problema.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 27 de setembro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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