VENTURA: O Primeiro Vértice Do Triângulo :: Por Fátima Almeida
Fátima Almeida airam22_fafa@hotmail.com
VENTURA ? O Primeiro Vrtice Do Tringulo (Foto: byfafah)
Quando eu ainda era uma garotinha, Ventura era um povoado com poucas casas, uma Igreja Católica, um barracão onde funcionava a feira, duas escolas e o comércio era por conta de três estabelecimentos. Pertenciam a vovô, papai e titio. Se fizéssemos um mapa para localizá-los, diríamos que ocupavam os vértices de um triângulo, onde vovô ocuparia o “A”, papai o “B” e titio o “C”. Segundo os “mais velhos”, no início teria sido apenas a sede de uma grande fazenda que depois evoluiu para um povoado.
A “venda” de vovô, também era a farmácia local, onde comercializava medicamentos convencionais e aqueles que por ele eram manipulados. Os remédios eram sempre os mesmos para todos e como não tínhamos médicos ou postos de saúde, era a experiência de Seu Zico quem determinava os diagnósticos e as prescrições para cada caso. Para dores abdominais não tinha outro melhor que o Óleo de Rícino que eu só conseguia engolir misturado ao suco de laranja e sob a ameaça de uma surra. Passei um tempão odiando laranja. Melhorzinho um pouco, era o Sulfato de Sódio, mas não perdia o gosto metálico e salgado, nem misturado a água de coco. Os vermífugos mais famosos e consumidos eram Uvilon e Saúde dos Meninos. Mamãe nos acordava na madrugada, ingeríamos uma colher de sopa de açúcar e em seguida tomávamos o remédio e voltávamos a dormir. O açúcar? Era para assanhar os vermes. Caiu, machucou? Iodex resolvia, ou uma boa compressa de Mastruz, que também era indicado para curar bronquites e tosses, quando misturado seu sumo ao leite. Para machucados internos? Bálsamo. Maravilha Curativa (que faço uso até hoje) curava cortes e pequenas queimaduras. Pílulas de Vida do Dr. Ross, Vickvaporub, Franol, Saúde da Mulher, Elixir Paregórico, Magnésia e alguns outros, comuns a todos os moradores da circunvizinhança, que surtiam os efeitos desejados desde que observadas as devidas dosagens em consonância com a idade de cada paciente.
A variedade e o consumo de chás eram de causar inveja à nobreza britânica. Lá pelas terras da rainha, costumam tomar “the five o’clock tea”, e para nós era “the tea for any moment and necessity”. Deus nos abençoou com tantas plantas curativas, mas por culpa da nossa eterna urgência, preferimos correr para os laboratórios. Tudo a curto prazo, sempre.
Alergias por lá? Não, nunca ouvimos falar. A penicilina era a maior aliada nos tratamentos das infecções graves. Também não me recordo de ter visto muitos óbitos. As crianças vinham ao mundo pelas mãos treinadas das parteiras. Cesariana? Vixe! Era um palavrão. E o pessoal não economizava quando se tratava de procriar. Levava ao pé da letra o “Multiplicai-vos, enchei e dominai a terra”. (Gn 1,28) Inveja de Noé? A prole era sempre tão numerosa que faltava inspiração para nomear, por isso era comum encontrarmos irmãos José Paulo e Paulo José.
E assim, a cada necessidade corria-se para a “venda” de Seu Zico, onde além de remédios e alguns alimentos, também se encontrava esperança, a receita de um bom chá e o delicioso “ziquinho”, uma bebida especial que ele desenvolveu usando como substância básica o jenipapo e fazia gosto em distribuir para os amigos.
Vovô era o meu Xodó. Morava com vovó, numa enorme casa com varanda, que por lá costumavam chamar “avarandado” ou “alpendre” e teria sido em outra época, a Casa Grande da fazenda. Sendo a primeira neta, era muito mimada por eles e tinha liberdade para fazer o que me desse vontade, como enfiar as mãos nos sacos de feijão ou café e ver os grãos se espalharem. Era uma sensação gostosa, até que papai chegava e colocava ordem na bagunça. Lá era a diversão, em casa, mesmo com muito amor, era a educação rígida, disciplinada. Falava-se baixo, respeitava-se os pais, os mais velhos, a professora. Palavrão? Nem em pensamento. Fazíamos as refeições, todos juntos e calados. Somente papai e mamãe conversavam. Ninguém estava autorizado a se servir antes deles e muito menos a deixar a mesa antes que todos terminassem. Apesar de sermos pobres e morarmos num povoado, aprendíamos a nos portar em qualquer ambiente, com educação. Com todo esse rigor em casa, fugir para junto de vovô era inevitável.
Fui estudar em Alagoinhas e nas férias era para lá que eu corria logo que colocava os pés em Ventura e com imensa alegria e muito carinho era recebida por ele. Conversávamos horas a fio. Existia uma confiança recíproca que me deixava à vontade para compartilhar com aquele querido velhinho as minhas alegrias e tristezas. E as frutas? Ele as distribuía igualmente com todos os netos, mas duas netinhas tinham certos privilégios, Ana e eu, merecíamos sempre as melhores frutas do quintal. Certa vez, ele colocou ao meu lado um cachinho de cocos verdes, daqueles pequenos (coco anão) e eu estava tão sedenta que bebi a água de todos. Santa saúde de adolescente! As limas, maravilhosas, enormes e doces que eu tinha o prazer de saborear sentada num banquinho, ao lado da limeira. Com todo cuidado ele as colhia, descascava e me passava uma a uma, com todo cuidado para não amassar, “porque lima é como uma pessoa sensível minha filha, se machucar, fica amarga”, me dizia. Era um sábio, meu Vô. Ali sentada no banco da varanda eu ouvia as histórias que a sua memória se atrevia a guardar. Histórias que ele lembrava com carinho, da juventude e do tempo que viveu com a minha Avó. Ali também eu ouvia conselhos e quando necessário, repreendas. E aos 97 anos, lúcido, andando com a sua bengala, vendo as horas num relógio de pulso sem óculos, com a cabecinha ainda ficando grisalha ele começou a avisar-nos que estava partindo. Todos os dias perguntava a data e quando alguém respondia ele murmurava: “o dia está chegando...” Ninguém dava crédito. Era caduquice! Infelizmente essa é a nossa cultura. Desprezamos as experiências e a sabedoria dos que já viveram tudo. Achamos que não sabem de nada. Mas esse dia chegou. Eu estava longe, mas sonhei com algo estranho. Um culto religioso, com muitas pessoas cantando para Nossa Senhora e acordei com a triste notícia que ele partira. E José se foi ao encontro de sua Maria. De fato, ocorreu o culto católico, com o cântico que eu ouvira em sonho. Foi um triste déjà vu.
Saindo do momento saudade... As lembranças são fortes e maravilhosas e para que nunca se percam, eu procuro registrá-las, como posso.
Essa parte de meu Ventura eu encerro por aqui, mas lembrem-se que ainda existem os vértices “B” e “C” daquele triângulo, além dos outros detalhes que trarei nas próximas histórias.
Fátima Almeida airam22_fafa@hotmail.com 02/10/2015