A estúpida morte de João Calisto :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Jos Lima Santana - Foto: Arquivo pessoal
João Calisto seguia para a fazenda do patrão, de “seu” Chiquinho Vieira, com a cabeça fervilhando de pensamentos, como sempre. Pensava na riqueza que era a chuva, inigualável para o sertão, garantidora da sobrevivência de todos, ricos e pobres. Pensava na terra muita, farta, que daria para todo mundo ter o seu quinhão, a sua beira. Mas a terra abundante tinha donos, uns poucos donos. E o governo não fazia nada para ajudar os pobres, porque os ricos mandavam no governo. No entanto, ele entendia que aquela era a sua terra, que aquele era o seu mundo, que o martirizava, que o fazia arder como se estivesse dentro de uma coivara. Os outros roceiros, como ele, pensariam daquele jeito? Decididamente, ninguém tinha coragem para nada. Ninguém tinha coragem para fazer uma revolução de verdade. E assim a vida mesquinha dos pobres continuaria sem solução, ao ponto de a vida e a morte confundirem-se numa coisa só. Ele tinha raiva dos pobres mofinos, que só sabiam dizer duas coisas: “Sim, senhor!” e “Amém!”. “Sim, senhor”, uma peste! “Amém”, uma ova! Tinha raiva dos ricos gananciosos e insensíveis, tinha raiva do governo dos milicos, que botaram o presidente para correr, tinha raiva de tudo. E devia até ter raiva de Deus, que não dava um prumo na vida dos pobres. Que Deus o perdoasse. Que, em sua misericórdia, não o condenasse ao fogo do inferno. Afinal, ele era apenas um bruto. Mas, então, Jesus não veio trazer fogo à Terra? Não viveu com os pobres e desprezados? Até alguns padres torciam a cara para Jesus: uns acolhiam a todos, inclusive aos pobres, enquanto outros só serviam para lamber as botas dos ricos e dos poderosos. Estes não estariam certos. Não estariam do lado de Jesus.
Com tais pensamentos, João Calisto ia cumprindo sua sina de cabra pé de boi, de besta de carga de “seu” Chiquinho Vieira. Subitamente, ele ouviu um estampido pipocar perto, muito perto. Sentiu um calafrio percorrendo-lhe todo o corpo, e era como se o peito estivesse abrindo-se, esbagaçando-se completamente. Tentou levar a mão ao seu lado esquerdo, mas ela não reagiu, não obedeceu a sua vontade. Pôde sentir que anoitecera de repente. Fora-se o sol que bebia a água das poças, a água das trovoadas. Na cabeça, bem dentro dos miolos, um enxame de abelhas arapuás zumbia sem parar. Era tudo muito rápido, depressa demais. O velho coração estava sem forças para bater, ele o sentia. Assim, de repente, era tão esquisito, era tão sem propósito... As pernas já não tinham sustança e não suportaram o peso do corpo, do caco de corpo cansado de muito planejar, de muito sofrer. Era tão sem propósito, tão esquisito tudo aquilo. Sentiu, com grande esforço, o chão duro, úmido. Estava muito, muito escuro. O mundo enchera-se de sombras. As abelhas não lhe davam trégua dentro dos miolos. Pareciam trabalhar com avidez. Precisava livrar-se delas bem depressa para cobrar algum tino, para ter algum alívio. Alguém deveria ajudá-lo.
Ah, D. Antônia, sua mulher, já estava vindo com a toalha enrolada na cabeça, muito branca. Ele podia vê-la. Mas ela vinha muito devagar, lerda demais. Estava triste sua mulher, como sempre estivera a maior parte do tempo. Ele precisava dela mais do que nunca. Ela vinha sem ser chamada. Ele não a podia chamar. A boca estava pastosa, a língua afogava-se em alguma coisa. Era tão difícil aquele seu estado, assim de repente. A toalha branca na cabeça de D. Antônia. A mulher triste que vinha muito lentamente, como uma sombra naquela noite estranha. E aquela era uma noite de muitas sombras. O reumatismo de D. Antônia a impedia de andar depressa. Zé Bento, o roceiro que desafiava o governo, também chegava com a fronte erguida e com o costumeiro desassombro. Vinha aflito, para tentar salvar o amigo. Mas ele também vinha muito devagar. Vinha sozinho. Os pobres daquela boca de sertão não o acompanhavam. Pobres infelizes! Eles estavam ocupados demais em regar a falta de vontade, a falta de união. Nem por isso, Zé Bento desistiria. A decisão de enfrentamento continuava ali em sua cara, a força de vontade, a disposição para ensinar a lutar. Um dia, os pobres deixar-se-iam tocar pelas suas palavras. Alguns, ao menos. Uns vagalumes alumiavam o caminho de D. Antônia e Zé Bento naquela noite diferente, naquela noite esquisita. O coração de João Calisto não aguentaria varar a noite e alcançar o brilho da estrela da manhã? Ele o sentia cada vez mais fraco. Era tão difícil senti-lo daquele jeito! Era estranho sentir a língua perdida na boca pastosa. Algo estava para acontecer, mas demorava muito. A noite dificultava as coisas, a noite repentina. Ele precisava valer-se de alguma coisa, de alguém que lhe pudesse salvar das arapuás, que lhe pudesse recompor o coração fracassado, que lhe desafogasse a língua, que lhe devolvesse o atrevimento. Mas, D. Antônia e Zé Bento demoravam a chegar, caminhavam muito lentamente.
“Seu” Chiquinho Vieira o esperava com o animal. O patrão era um homem bom, diferente dos outros ricos da cidade. O cavalo ruço era manhoso e cabriolaria bastante antes de deixar-se subjugar pelo cabresto de caroá. Precisava levantar-se para fazer o serviço do patrão. Não poderia desapontar o fazendeiro para quem trabalhava há uma infinidade de anos e que o arrancara do xilindró, por causa de uma encrenca com Elísio Moura, um fazendeiro de bosta, que não quis lhe pagar pelos estragos que o gado dele fez em sua roça. “Seu” Chiquinho fez Elísio pagar no contado, mas este jurou vingança. Que vida triste era a dos pobres! Ah, e agora aquela noite absurda, sem motivo algum que a explicasse!
Zé Bento vinha para dar um jeito na noite que chegara fora de hora, naquela noite besta que escondia as florzinhas abortadas por aí com a chegada das trovoadas. Aquela noite medonha que calava os passarinhos, que deixava João Calisto estropiado. O amigo sindicalista rural daria um jeito nela, na noite desembestada, lutaria para que houvesse uma luz que esmagasse os negros véus que tentavam roubar a vida, a vida de muita gente que morria sem querer morrer, antes do tempo, e que não tinha aprendido a lutar contra aquela noite malvada que vinha de todo lado e a toda hora. Zé Bento ensinava a combater o governo desalmado dos milicos e a cambada toda dos poderosos que sugavam o sangue do povo, de um ou de outro modo. A noite que surpreendera João Calisto seria vencida pelas tochas que Zé Bento traria em suas mãos, e que a purificariam e a deixariam da cor da toalha de dona Antônia. E o fim daquela noite seria o fim das abelhas que zumbiam nos miolos de João Calisto, seria o fim da moleza inexplicável que se abatera sobre seu corpo cansado. Ele teve muitas visões. Algumas sem pé nem cabeça.
João Calisto sentiu como se um vagalume se aproximasse de seus olhos. E veio outro e mais outro, e muitos outros vagalumes. Ele mergulhou ainda mais na noite medonha, na que parecia não ter fim. Era mais uma vítima da luta pela terra, no campo ensanguentado de um país tão imenso, que teimava em não saber, ou em não querer cuidar de todos os seus filhos. Perto dali, um sujeito, a soldo barato, guardava num saco de estopa a escopeta, que, com um tiro certeiro, trouxera para João Calisto aquela noite medonha.
Observação: Este artigo é uma adaptação do final do último capítulo do romance “A Morte Fora de Hora”, de minha autoria, publicado em 1993, em BH, e esgotado.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 25 de outubro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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