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Aracaju (SE), 26 de dezembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 08 de novembro de 2015

Mané de Catú :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Imagem ilustrativa/Reprodução internet

Imagem ilustrativa/Reprodução internet

Não sei se algum(a) dos(as) leitores(as) conheceu Mané de Catú, homem trabalhador e pacato, que migrou de Porto Calvo, nas Alagoas, para o sertão sergipano há mais de sessenta anos, a contar, regressivamente, desta data. Já era homem de família criada quando para cá ele se aboletou. Ninguém nunca soube as razões da mudança. Ele nunca disse, nem alguém jamais perguntou. Afinal, certos enxerimentos não cabem nas vidas das pessoas. Cada um cuida de si e deve saber muito bem como cuidar.
Eu o conheci no início da década de 1980, quando comecei a advogar no sertão. No tempo em que só tinha asfalto até Nossa Senhora das Dores. Tive muitos para-brisas de carro quebrados. O meu carro era um fusquinha verde-abacate. Ano de fabricação 1980, modelo 1981. Comprado em janeiro desse último ano, um mês após a minha formatura, a 26 de dezembro de 1980. E lá se vão trinta e cinco anos. Aliás, vi, num libreto de piadas que fusca é como chifre: um dia, na vida, todo mundo teve um. Que coisa horrorosa!
Mané de Catú era um senhor de cerca de oitenta e alguns anos, quando eu o conheci. Fui seu advogado numa ação de usucapião. Pai de um único filho e de muitas filhas. Avô de incontáveis netos. Bisavô de uns cinco ou seis. Era um pequeno proprietário rural, muito estimado e ouvido no povoado onde residia e labutava. Não tinha vizinho que não o considerasse. Nem político da cidade que não o adulasse por conta dos muitos votos que tinha em sua família. Família unida, que riscava onde o patriarca mandava. Todavia, o velho alagoano não dava fiança a muitos políticos. Era cismado. Jamais prometera votos para quem quer que fosse. Votava com os seus em quem lhe agradasse, em quem podia, no seu pensamento, socorrer os pobres numa precisão. Afinal, o povoado era carente de um-tudo.
O único filho de Mané de Catú era Roberto de Mané de Catú, casado com Dona Mariinha de Filipinho dos Gameleiros. Um sujeito cativante. Bom como o pai e, como ele, trabalhador de sol a sol. Eram pobres, mas não miseráveis. Tinham lá suas pequenas propriedades e seu gadinho de leite e de corte. Coisas poucas, mas que não lhes deixavam, em tempos de boas chuvas, passarem apertos. Porém, quando a seca apertava o laço, era um Deus nos acuda. Pobre sertão nordestino, que entrava ano e saía ano sem que um valimento de sustança chegasse aos moradores das caatingas.
Além de ser o único homem no meio de doze irmãs, Roberto de Mané de Catú era o mais novo. Ponta de rama. Nascera quando Dona Inácia já andava perto do atamento da sangria. Aliás, Roberto parecia filho das irmãs mais velhas. Por isso mesmo, as irmãs, todas elas, o paparicavam. Ele era o xodó da família, incluindo cunhados e sobrinhos. E, com todos, ele era muito solícito. Desposara, em 1968, a filha de um sargento da Polícia, que fora assassinado por um colega de farda, numa cachaçada. Do casamento, apenas uma filha. A mulher, Dona Aparecida, tivera problemas no parto e não pudera mais segurar menino. A filha, Cíntia Roberta, era um mimo de mocinha. Menina prendada nos bordados, além de ter “a cabeça boa”, como diziam os pais, isto é, era muito estudiosa. Em 1983, aos quatorze anos, ela estava concluindo a oitava série. No ano seguinte, estaria no segundo grau. E, segundo o seu desejo, três anos depois, faria vestibular para direito. Queria ser juíza. Haveria de morar na capital, na casa de uma tia, irmã de sua mãe. Por enquanto, estudava na cidade, onde passava a semana na casa de uma irmã de seu pai. Toda sexta-feira à tarde, o pai tinha a missão de trazê-la de volta para casa. No domingo à tarde, ele a levava à cidade.
Um dia, a casa dos Catús caiu. Desmoronou peça por peça, parede por parede. Uma desgraça. O céu dos Catús escureceu de repente, sem que fosse dia de chuva, tarde de pavorosa trovoada. Uma noite antecipada se abateu sobre a família de Mané de Catú. E não seria a única. Cíntia Roberta fora deflorada pelo filho de um rico fazendeiro de outro município, ali da vizinhança. O sujeito, vezeiro nesse tipo de abominação, a sequestrara a caminho da escola e com ela fizera todo tipo de porcaria. A menina fora achada por uns conhecidos da tia, num caminho perto da cidade. Um lugar ermo. As roupas rasgadas, ensanguentada, quase desfalecida, em completa petição de miséria, no dizer do povo.
O bandido, que, além de mau caráter, era do tipo falastrão, andou dizendo nas redondezas, em tom de zombaria: “Papei a filha e papo a mãe.”. Roberto de Mané de Catú foi à delegacia com a irmã, o cunhado e a filha. O delegado fez o que lhe cabia. Exame de corpo delito feito na Fundação SESP. E, mais tarde, repetido, no IML, a pedido do Promotor de Justiça. Na ocorrência do fato, a menina já tinha completado quatorze anos. O processo criminal andou a passos de cágado. Essa foi a denúncia: rapto (art. 219, do CP). Filhinho de papai, advogado famoso, processo com possível destinação garantida. Talvez, pena mínima, ou seja, dois anos de reclusão. Sursis à vista. E a desonra na casa dos Catús. A desgraça da menina.
Roberto de Mané de Catú entrou em desespero. A sua índole pacata foi tomada por um turbilhão. Aos poucos, porém, ele serenou. Começou a não dizer coisa com coisa. A família alarmou-se. Internamentos sucessivos na capital. Nunca mais ele recobraria o juízo.
O velho Mané de Catú andava perto dos noventa anos. Cíntia Roberta era a neta mais nova. Roberto era o filho mais novo e o único homem que a sua mulher lhe dera. Ele viu os véus da desgraça caírem sobre a sua família. Uma noite, ele não conseguiu pregar o olho um só instante. Levantou da cama. Pôs-se sob o telheiro da casa, pitando o cachimbo. Lembranças amargas vieram à cabeça. Viu uma irmã, menor, descabaçada por um político descarado, de pequena envergadura eleitoral e moral. O seu pai já era falecido. Coube a ele, Mané de Catú, fazer uma desgraça. E fez. Foi absolvido no júri. Daí a arribada para o sertão sergipano.
Idade de quase noventa anos. Um velho duro como a mais rija das baraúnas. Não teve dúvida. O caso da neta não poderia ficar assim. Preparou-se. Cochichou com dois amigos de sua inteira confiança, também alagoanos. Recebeu informações seguras. Foi dar com o deflorador em um bar de ponta de rua, numa cidade fronteiriça da Bahia, onde o pai dele tinha muitas terras. Só deu um tiro, à queima-roupa. No quengo. Os miolos ficaram grudados na parede suja. Fez o que não deveria fazer. Mas, fez. Não se deveria vencer a barbárie com a barbárie.
Mané de Catú, dizem, morreu com mais de cem anos, no Mato Grosso, para onde se aboletou com a ajuda de amigos e parentes das Alagoas. Parte da família para lá se mudou, em sigilo, incluindo Roberto, plenamente amalucado, a mulher e a filha.
Cíntia Roberta, cujo nome verdadeiro é bem outro, é, hoje, juíza federal, longe daqui. Que Deus a abençoe.

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 08 de novembro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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