A galinha de pescoço pelado :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Galinha preta de pescoo pelado (Foto: Marceleca/Baixaki)
Era no que dava confiar em todo mundo. Mas, dona Zica era assim mesmo: botava fiança em tudo que era gente de saia ou calça. Pessoa boa estava ali. Prestativa, rezadeira e, embora fosse católica enviesada, é bem verdade, gostava de atender quem a procurava para fazer um despacho. Despacho caprichado, botado em encruzilhada, na hora perigosa da noite. Era a hora em que o capeta e toda a sua coorte endiabrada corria a “lacoxia”, atanazando as pessoas de coração bamboleante, que não se firmava na palavra do Criador. Todavia, dona Zica, mulher de “seu” Paulino Curiboca, mais índio do que outro tipo de gente, daí o apelido, e filha de Manelão da Mão da Onça, antigo tocador de rebeca em festa de pobre, não fazia despacho para prejudicar ninguém. Eram umas coisinhas brandas, para ajuntar casais separados, aproximar bem mais depressa enamorados, conseguir emprego, dar um jeito em eleição de vereador. Nenhum candidato a prefeito jamais pedira o seu adjutório. Candidatos a vereador, sim. E tudo se arranjava a contento.
Na casa de dona Zica não se tocavam atabaques ou tambores. As sessões dela eram somente na base da cantoria. Uns cantos que misturavam candomblé com toré. Era, a bem da verdade, uma mistura sem pé nem cabeça, mas que acontecia muito por aquelas bandas. Onde ela aprendera aquelas traquinagens com arremedos de caboclos e pretos velhos? Com uma preta centenária, moradora nas Piranhas, pras bandas do Pé do Banco, ou seja, Siriri. Essa preta velha se chamava Sá Laurinda. Diziam pessoas antigas que ela se “envurtava”, de tal forma que ninguém dava conta de encontrá-la. Era uma mulher de certos poderes adquiridos, ao que parecia, com o seu pai, um antigo escravo dos eitos de canas da Cotinguiba, lá pras bandas das Laranjeiras e de sua mãe, filha de uma índia, não se sabia donde.
Dona Zica morava no Itperoá, povoado que era e é metade de Siriri, metade de Dores. E já fora bem mais movimentado. Ali ficava a bodega de “seu” Osmar, sempre sortida, e onde havia boa festa de São João com forró dos bons. Ainda à base do candeeiro. Uma festança de pé de pau, como, então, se dizia. Gente dali, da Cobra d’Água, da Maçaranduba, do Campo Grande, do Tauá, do Barro Vermelho, de Sabinópolis, da Fazendinha, da Mata do Cipó, das Dores, do Pé do Banco acorria à casa de dona Zica. Encomendas de despachos, rezas e garrafadas eram muitas.
Zé de Balbino cismou de meter-se em política. O que queria um pobre se metendo com chamego de eleição? Era o que perguntava a própria mãe dele, dona Carolina de Matilde do finado Felisberto das Porteiras. E ela mesma respondia: “Pobre pra ganhar ‘inleição’ só vendendo os cabelos da cabeça pra gastar com os ‘inleitô’. Fora disso, é ser mangado pelo povo”. Talvez ela tivesse razão. A compra de votos vinha de longe. Do Império? Da Roma antiga? Sabia-se lá! Contudo, Zé de Balbino não estava nem aí para o que dizia a sua mãe. Ele candidatou-se, sim, a vereador. Estava no partido do prefeito. Bateria de porta em porta. Ele era muito benquisto por todos. Não fazia mal a ninguém, e até servia a muitas pessoas, tinha um time de futebol amador, do tipo esfria sol, que não lhe faltaria nas urnas. Conhecia muita gente. Fazia muitos favores. Era festeiro. Na época, cento e alguns votos eram sinal de eleição garantida. Ele esperava juntar mais de duzentos votos. Caderno e lápis nas mãos, Zé de Balbino anotava nomes de eleitores tidos como certos. Rua por rua, povoado por povoado, biboca por biboca. Duzentos votos? Oxente! Seriam favas contadas.
Apesar do otimismo, Zé de Balbino, amigo de Pinto Pelado filho mais novo de dona Zica, apelou para o rapazola magricela e este o levou até a mãe rezadeira. Não custava se acautelar. Qualquer reforço em eleição deveria ser bem aceito, sempre. Dona Zica lhe receitara sete banhos de descarrego. Água com sal grosso, um frasco de alfazema, sete espadas de são Jorge, sete ramos de alecrim cheiroso, sete folhas de comigo-ninguém-pode, raspa de aroeira, sete penas de urubu e sete pétalas de rosa branca. Um banho e tanto. Afora isso, ela faria um despacho. Para tanto, seria preciso uma galinha preta de pescoço pelado. Uma oferenda para abrir de vez os caminhos das urnas. O pretenso futuro vereador ficou de conseguir a tal galinha preta de pescoço pelado naqueles dias. Procurou como se procura uma agulha num palheiro. Vasculhou Dores inteira e Siriri inteiro. Cidades e povoados. Não achou uma pra remédio. Na casa de Sá Valdivina, no Sarongongo, achou uma galinha pedrês. Não servia. No quintal do velho Dioclécio aguadeiro, Zé de Balbino foi encontrar uma galinha preta de pescoço pelado, mas com uma pouca penugem traseira esbranquiçada. Dona Zica descartou. Tinha que ser preta sem mancha. Nada. Não encontrou nada.
Ora, faltavam três semanas para a eleição. Zé de Balbino contou e recontou os votos anotados no caderno. Andara para cima e para baixo. Gastara o solado de duas alpercatas. Até vendera dois porcos gordos e cinco marrãs, para dar uns mimos a umas moças do Pau Que Chora. E para pagar umas e outras bicadas em várias bodegas por onde passara. Para as suas posses, fizera um gasto tremendo. Estava confiante. Era necessário, porém, contar com alguma proteção. Dona Zica o ajudaria se ele conseguisse a galinha preta de pescoço pelado. Foi, então, que ela lembrou que Evilásio de Marcolina vendia carne de sol na feira da Boca da Mata, isto é, Glória. A feira de lá já era uma grande feira. Quem sabia se por lá não seria fácil de arranjar a tal galinha preta sem mancha. Na feira do sábado seguinte, nada. Na outra feira, eis que Evilásio conseguiu a galinha como Zé de Balbino precisava. Seria a garantia da eleição. Dona Zica fizera o despacho. Farofa de dendê, cachaça e a galinha preta com uma fita vermelha envolvendo o pescoço pelado. A encruzilhada escolhida foi a da confluência da estrada da saboaria de Chico Costa em direção ao Brejo das Pedreiras, com a descida dos oitizeiros, na sequência do Beco de Zozó, logo abaixo da cruz do Carira. Pronto. Era somente esperar a consagração nas urnas.
Urnas, enfim, abertas, Zé de Balbino contaria com cento e trinta e três votos. O vereador eleito com a menor votação obtivera cento e trinta e quatro votos, apenas um voto a mais que Zé de Balbino. Ele censurou o despacho de dona Zica. Diziam que com ela era pau, casca. Não foi. Dona Zica, apesar da fama, não foi de grande valia. A rezadeira nunca tinha sido contestada antes. Ninguém jamais fora à sua casa para reclamar de um despacho mal feito, sem valimento. Era a primeira vez que isso acontecia com ela. De qualquer forma, ela se sentiu acabrunhada diante do vexame. Poderia perder a confiança das pessoas diante daquele fracasso. Faltou apenas um voto. Um voto!
Muita gente mangou de Zé de Balbino graças a sua ingenuidade e, sobretudo, ao caso da galinha preta de pescoço pelado. Ocorreu que Evilásio acabaria confessando na bodega de “seu” Américo de dona Berila, enquanto bebia umas doses de cinzano com coca-cola, que, como não conseguira arranjar uma galinha preta de pescoço pelado, comprara uma galinha preta de pescoço normal e mandou a sua mulher arrancar algumas penas do pescoço da galinha de modo que parecesse uma legítima galinha preta de pescoço pelado. O despacho não poderia ter dado certo. Azar de Zé de Balbino, que ficou de fora da Câmara Municipal por um voto. E de dona Zica que confiou em Evilásio.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 06 de dezembro de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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