A mais terrível das memórias :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Êh mundão perdido de meu Deus! Mundão perdido, sem jeito. O que esperar de um mundo onde Júlio de Jovelino de Maria Sabiá era tido como um homem de bem? Um manhoso safado. Um cara de pau da pior espécie que, quando era menino, já mostrava as unhas, furtando as nicas que o cego Badé recebia de esmolas. Júlio, por algum tempo, foi guia de cego, isto é, do cego Badé do Bambuzal. Cego, mas pai de uma ruma de filhos, casado que ele era na Igreja e no cartório. Cego de nascença, o coitado. Herdara um beiço de terra, de areia preta, fértil. E a mulher, Fifita de Sá Doralice, nela trabalhava como uma desvalida, para criar os oito filhos, o mais velho com dez anos e a caçula com sete meses de nascida. Era um filho atrás do outro. Para completar a boia, Badé esmolava, no tempo em que ainda não tinham criado o FUNRURAL, que, dizem hoje, ajudou a quebrar a Previdência, mas tirou muitos pobres idosos da mendicância.
Mas, o caso não é com Badé. E, sim, com Júlio, também apelidado de Mão Ligeira. O sujeito cresceu no vício de passar a mão no alheio. E assim fez-se homem. Preso? Ele fora umas não sei quantas vezes. Estabelecera-se, por fim, com um armazém de secos e molhados. Um negócio mais molhado do que seco. Dizia-se, no seu tempo, que ele comprava cargas roubadas e, também, contrabandeava à vontade. Tornou-se rico, ao menos para a situação da cidadezinha modorrenta, que nem cheirava nem fedia. Separada de pouco tempo da cidade-mãe. Coisas da velha e nunca mudada política brasileira, que quase só presta para fazer um amontoado de besteira, entra ano e sai ano, entra governo e sai governo. Ora, ele tinha dinheiro? Era um homem de bem. E foi exatamente assim que Júlio de Jovino virou gente importante. Comerciante e fazendeiro. As duas filhas estudavam no melhor colégio de Aracaju. A mulher, Gracinha de Dona Neném, andava entufada, metida em roupas que foram moda dois ou três anos antes. ‘Trupicava’ no paralelepípedo do calçamento das ruas, porém não descia do salto alto. Quer ver uma presepada das seiscentas? É uma tabaroa metida a ser perua. “Quá, quá, quá, quá...”.
Bem. Hoje, eu não estou para arrodeios. Uma coisinha aqui, outra coisinha ali, é mais do que natural. É para dar movimento ao escrito. Para me alongar um pouquinho na conversa. Afinal, eu gosto de bater papo com os leitores. Irei, agora, ao ponto crucial da conversa. Júlio de Jovelino de Maria Sabiá, então tratado por ‘seu’ Júlio do Mercadinho, endinheirado e fatiotado, achou por bem de meter-se na política. Santo Deus! Já não bastavam os que comiam e bebiam às custas do povo, roubando milhões dos depauperados cofres públicos? As pessoas de bem, de bem mesmo, eram passadas para trás. O dinheiro das ladroagens acabava financiando mais ladroagens.
Júlio de Jovelino seria candidato a prefeito. Um deputado estadual e outro federal lhe davam guarida. Ora, o ainda pré-candidato arrotava. Já andava de povoado em povoado fazendo farras, tapeando o povaréu incauto, de bodega em bodega pagando um trago para quem quisesse. E jogando conversa fora. Prometendo isso e aquilo. Conversador ele era. E dos bons. Bom de bico na lorota e no copo. Só bebia Cinzano com Guaiamu. Há quem prefira “guaiamum”. Eram um vermute e uma aguardente muito famosos à época. E essa mistura era bastante apreciada em muitos pés de balcões.
O vereador Paulinho Escaleno, figura desarrumada do ponto de vista da arquitetura humana, se assim puder ser dito, daí o apelido Escaleno, era o maior entusiasta da pré-candidatura de Júlio de Jovelino. A minha avó já dizia que um sapato roto era para um pé doente. A velha sabedoria popular. Outro que boa bisca não era, aquele Paulinho Escaleno. Deserdou a única irmã. Surrupiou o que seria dela, inventando umas notas promissórias em nome do falecido pai, como devedor, para apossar-se da casa e da fazendola de massapé. Deu à irmã analfabeta uns trocados. E nada mais. Raça de aranha caranguejeira da desgraça. Juntos, fariam, Júlio e Paulinho, uma dupla de arrombar. De arrombar os cofres já por demais arrombados da Prefeitura Municipal, da viúva despossuída como se dizia. Se fosse para dar um nome à dupla, poderia ser “Espinheiro e Cansanção”. O povo sofrido haveria de sofrer ainda mais.
A candidatura de Júlio de Jovelino emplacou. Candidatou-se por um partido nanico, que um ex-prefeito de outra cidade lhe vendeu a sigla e o apoio, pois que gozava de prestígio popular na região. Outro maroto. “Quando os ratos se ajuntam, queijo há de faltar na mesa”, dizia o velho Marcionilo da Patioba, que se intitulava neto de barão. Isso, claro, há muito tempo. Naquela época, ainda não havia reeleição. O jovem e operoso prefeito, que recebera a municipalidade lascada de ponta a ponta, equilibrara a situação financeira e apresentara como seu sucessor outro jovem, este o vereador mais votado na última eleição. Professor da rede estadual de ensino, muito bem quisto pelos jovens, e respeitado pelas pessoas de bem. Porém, não tinha fortunas para gastar na campanha. Enfrentar Júlio de Jovelino de Maria Sabiá? Só com a coragem e a cara? Era, sim, uma empreitada e tanto.
A campanha correu solta. O município era termo da comarca. As autoridades, juiz e promotor público, por lá não andavam. As audiências eram feitas na sede da comarca. As questões eleitorais deslindavam-se no cartório eleitoral igualmente situado na sede da zona eleitoral, que era, obviamente, a sede da comarca. Júlio abusou. O poder econômico levantou a crista como se fora um galo bom de briga. Para dizer a verdade, naquele tempo não havia essa conversa de poder econômico ou de corrupção eleitoral. Quem podia, podia. Quem não podia se ferrava.
Numa tarde de sexta-feira, quase à boquinha da noite, Júlio e comitiva aportaram no terreiro do velho Mirandinha da Bela Vista, que saíra de sua terra para as bandas de São Paulo e regressara há pouco tempo, após por lá morar uns quarenta anos. ‘Seu’ Mirandinha não tinha filhos. Eram ele e a mulher. A parentela dele, contudo, enchia três povoados. Era uma fartura. E ele dizia: – Vim morrer na minha terra, porque aqui tem quem chore por mim –. E bem fez ele.
Júlio acercou-se do velho Mirandinha, que pitava o seu cigarrinho, sentado na cadeira de balanço. Cumprimentou-o. Perguntou se ele era eleitor. Diante da resposta afirmativa, pediu o voto. Quando ia começar a lorotar, ‘seu’ Otaviano Miranda das Mercês, o nome de registro de Mirandinha, cortou-lhe a palavra e mandou bala: – Você não é aquele moleque guia de cego, que surrupiava as nicas do cego Badé? Não é você a quem o povo chamava de Mão Ligeira? Não foi você quem roubou o cavalo malhado do meu tio Bertoldo? E quer ser prefeito? É o fim do mundo! –. Júlio de Jovelino não esperava por aquilo. Coisas do passado, remoídas naquela hora.
Otaviano Miranda das Mercês juntou a parentela da Bela Vista, do Marmeleiro e da Cancela Torta, e pediu que não votasse em Júlio. Os três povoados, por coincidência, eram redutos do vereador Paulinho Escaleno, apoiador de Júlio. Pela primeira vez, em cinco eleições, Paulinho obteve ali uma ninharia de votos. E Júlio de Jovelino de Maria Sabiá foi engolido pelo adversário nas urnas dali. Na apuração geral, ele perdeu a eleição por vinte e seis votos. No contado. Abençoada memória do velho Mirandinha. Como diz Márcio de Bia, o velho Mirandinha tinha memória de sertanejo vingativo. A mais terrível das memórias.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 21 de fevereiro de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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