Safadeza no cemitério :: Por José Lima Santana
Safadeza no cemitério :: Por José Lima Santana - Foto: Reprodução/3 fases da Lua
Naquela noite, no descampado do Cruzeiro das Moças, a fresca estava boa. Fresca de brejo. E lá vinha João de Firmino fumando um cigarro “astória”, cujo maço era de papel amarelo. A brasa do cigarro, consumindo o tabaco, parecia um vagalume piscando, preso na boca do fumante, a cada tragada que ele dava. O cabra tinha partes com jia e sapo. Não sentia frio. A camisa aberta no peito recebia lufadas de vento. Ventinho maneiro, como costumava ser o vento de agosto naquelas paragens. Ele voltava da casa de Maria de Belo, mãe de dois dos seus oito filhos reconhecidos. Solteirão. Namorador apaideguado. Beirava os cinquenta anos, mas ainda era um sujeito forte, aparentando menos dez. Vendedor de miudezas nas feiras de Dores e Muribeca. Aquela, na segunda-feira, e esta, no domingo. Tinha de seu um bom sítio de areia fértil. Boa mandioca, bom milho e bom feijão. Fruteiras as tinha para danar. Juntando uma coisa e outra, os oito filhos não passavam necessidade, embora dispersos em cinco casas. Em ordem de pobre, todos iam vivendo, que pai cuidadoso, dentro de suas posses, ele era. Mas a sua santa mãe, Dona Francisca, costureira, zeladora das “Filhas de Maria”, na Igreja Matriz, não se conformava com a vida dissoluta do filho, que vivia em estado de pecado com várias mulheres ao mesmo tempo, sem nunca se dignar em receber o santo sacramento do matrimônio, como convinha a um homem nascido e criado numa família de pessoas tementes a Deus. Pobre mãe, que, logo cedo, não pôde botar cabresto no filho!
João de Firmino, nos tempos idos, fora eleitor da UDN. Gente, pois, de “seu” Maneca do Poção. Portanto, um cara-preta. Do outro lado, era o povo de “seu” Tota, chefe do PR, aliado ao PSD de Juca do Caípe, os “rabos-brancos”. Mas João de Firmino era, naqueles tempos danados, morador do então povoado Aleixo, que viraria Município. Ali, no Aleixo, ele enfrentou adversários fogosos. Topou com brigas feias. Não suas, mas de correligionários udenistas que acabavam se engalfinhando com os contrários. E ele estava do lado dos seus. Teve vezes de enfrentar tormenta de faca ou bala. Feridos, uns dois ou três. Mortos, nenhuns. Juras de mortes? Diversas, embora nunca concretizadas. Louvado fosse o nome de Jesus! Dona Francisca era quem velava por ele e por todos da família. Apesar da vida dissoluta para o lado do mulherio, ele não seria um endiabrado, um Barrabás. Até ajudava o Padre Miguel nas precisões da Igreja. Não era, porém, um devoto, para desgosto de sua santa mãe. A vida, porém, é assim: de tudo há.
Ao aproximar-se do cemitério dali, do Cruzeiro das Moças, João de Firmino ouviu uns gritos miúdos, que mais pareciam gemidos. Apurou as “oiças”. Colocou a mão em concha na orelha esquerda. O barulhinho parecia vir do muro do lado direito do pequeno cemitério. Ouvindo melhor, lhe pareceu barulho de gente fazendo safadeza. Coisa de homem e mulher, em descarado desvario num lugar daquele, que merecia todo o respeito. Safadeza em noite de lua cheia. Freando a bicicleta e dela descendo, foi-se chegando de mansinho. Já, agora, podia ouvir nitidamente os gemidos: “Ai!”. “Ui!”. “Ai!”. “Ui!”. Era mesmo coisa de sem-vergonhice. De público descaramento, apesar de ser noite. Mas, ali, não era lugar para tamanho desmantelo. Quase chegando à quina do cemitério, pôde ouvir melhor e distinguir os tipos de vozes, que, intercaladas, sussurravam: “Ai!”. “Ui!”. “Ai!”. “Ui!”. Eram vozes de dois homens. Danou-se. Logo dois sujeitos em desatinada perversão? Pensou logo em tirar o cinturão e meter no lombo dos dois descarados. Refletiu. O que era que ele tinha a ver com aquilo, com aquela pouca vergonha dos dois celerados? Deixasse para lá! Cada um tomasse conta de sua vida, que da dele tomava ele. Devagarzinho, para não espantar os descarados, montou na bicicleta e foi tirando o corpo fora, afastando-se da quina. Mas os continuados gemidos lhe causavam uma agonia danada. Ali, encostado ao cemitério, lugar do sono profundo de tantos defuntos, que não mereciam ser molestados. Como se realmente o pudessem ser. Voltou. Silenciosamente, voltou. Desceu. Armou o pé de apoio da bicicleta. Tomou a calçada de pedra bruta. Dirigiu-se de novo ao muro direito. E eis que lá estavam os dois. Pendurados no vício, do qual só podiam desfrutar escondidos. Gozando com o mesmo gosto. De um e do outro, a baba caindo da boca.
João de Firmino reconheceu os dois. O luar ajudou a identificá-los. Eram dois irmãos. Sim, dois irmãos, filhos de um morador dali mesmo, cuja casa, situada no meio de uma malhada, ficava quase rente ao muro esquerdo do cemitério. Eles, como se disse, estavam encostados no muro direito, ou seja, do outro lado, afastados da casa. Dois rapazolas. Por uma ironia do destino, ou sabia-se lá por qual razão, os dois nasceram cegos, com diferença de um ano e pouco. E estavam fumando um charuto, coisa que o pai, decerto, não aprovava, crente da lei batista que era. Daí o fumarem às escondidas. Sem enxergar, quando um passava o charuto para o outro, este, tocando na brasa do charuto, gritava: “Ai!”. Ao retornar o charuto para o primeiro, este também tateava e tocava na bendita brasa e também gritava: “Ui!”. Nada demais. João de Firmino saiu de mansinho. E foi-se embora, rindo às escâncaras. Em noite de lua cheia, tudo podia acontecer. Até dois irmãos cegos fumando um charuto às escondidas. Coisas da vida, hein João de Firmino?
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 15 e 16 de março de 2015. Publicação neste site autorizada pelo autor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
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