O juiz e as mulheres :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
O juiz e o promotor não eram do tipo que se recolhiam aos aposentos do Fórum, fora do expediente. Não eram do tipo que se sentiam semideuses. Mantinham relativa convivência social. E até mesmo jogavam futsal no time improvisado que um assessor formara. Sabiam, porém, o juiz e o promotor, manter a postura que os respectivos cargos exigiam de ambos. As autoridades municipais e as pessoas em geral louvavam a atuação prestimosa e eficiente de ambos.
O Dr. Jean Carlos mantivera um namoro de vários anos com uma colega de sua irmã, estudante de medicina. Casaram-se logo após ele ter sido aprovado no concurso para juiz substituto e após ela ter retornado da residência médica em São Paulo. Ela era cardiologista e mantinha uma clínica com boa clientela. Os dois formavam um casal apaixonado, cúmplice. Em pouco tempo, já eram pais de um garotinho, Jean-Pierre Albuquerque da Silveira Montes. A Dra. Mônica Albuquerque jamais teve motivos para sentir ciúmes do marido. O juiz era um homem devotado à esposa, ao filho, ao trabalho e ao estudo. Férias combinadas, viagens realizadas. Gostavam de desvendar novas plagas turísticas. Fugiam dos centros mais festejados pelos turistas.
O juiz Jean Carlos não era dado a farras nos fins de semana. Seus fins de semana eram dedicados à família. À sua e à de sua esposa. Era, por assim dizer, o filho predileto de seus pais. O outro irmão, John Alberto, trabalhava no exterior. E pouco dava notícias. Vivia de um para outro lado, de um para outro canto do mundo. Trabalhava com informática. Desde pequeno, ele era disperso em relação à família. Cedo, tornara-se um autêntico andarilho. Os sogros do juiz, também médicos como a filha, tinham o genro em grande consideração. E ele, Jean Carlos, era amável com todos. As luzes de sua vida eram a mulher e o filho. Por eles, ele vivia. Trabalhava. Esmerava-se. Por outro lado, ele era o marido que qualquer mulher desejaria ter. O pai que qualquer filho, de tenra idade ou não, poderia ter como o melhor dos pais. O seu filhinho, ainda tão novo, parecia-lhe um raio de sol, o mais dourado raio de sol. A brisa mais branda. O mais vivo e sublime lírio do campo. Mais branco. Mais perfumado.
Poderia haver casal mais feliz do que Jean Carlos e Mônica? Tão feliz, deviam ser poucos. Casal mais feliz, provavelmente, nenhum. Nunca se sabia ao certo. E a cardiologista era o sonho de mulher que um homem poderia almejar. Mulher de fibra. Autêntica. Dedicada ao trabalho. Atualizada. Bela. Contudo, a despeito de muito trabalhar, era uma esposa e uma mãe exemplar. A agenda profissional era limitada pela agenda familiar. Jean Carlos e Mônica eram um para o outro como o orvalho das madrugadas o é para a relva macia, que cresce nos prados e nos jardins. Eles empreendiam a mesma caminhada, mas cada um caminhando com os próprios pés. Respeitavam-se. Compreendiam-se. Amavam-se. Discordâncias? Sim, mas muito poucas. Nada que não pudessem resolver com o diálogo aberto e sincero que cultivavam desde o início do namoro. Embora seja uma afirmação do tipo que se diz ser “lugar comum”, a vida lhes sorria e eles sorriam para a vida.
Um fim de semana prolongado. Muito antes, Mônica planejara viajar. Jean Carlos concordou. Eles iriam a Belo Horizonte, alugariam um carro e fariam um tour pelas cidades históricas mineiras. Antes, porém, de adquirirem as passagens aéreas e tomarem outras providências, ele desistiu da viagem, alegando que precisava ajeitar as coisas na comarca, pois haveria uma visita do corregedor. Ela sentiu muito, mas compreendeu. A viagem ficaria para outra oportunidade. Passariam o fim de semana em casa. Ele levou alguns processos para despachar. Processos que requeriam um estudo mais aprofundado. Mandados de segurança. Professores em conflito com o poder público. Pensões alimentícias. Sentenças de pronúncia a serem proferidas. E muito mais.
No sábado à noite, o juiz demorou-se para se recolher. Ficara até o início da madrugada envolto com os processos. Mônica recolhera-se pouco depois do jantar. Tinham jantado fora. Comeram bons pratos e tomaram um bom vinho. Como sempre, um casal que exalava o inebriante perfume da felicidade. A licença poética é sempre cabível. O juiz Jean Carlos não teve um sono tranquilo. Aliás, nos últimos fins de semana, que era quando ele estava em casa, Mônica notou que ele dormia com alguns sobressaltos. Remexia-se muito na cama. Proferia baixinho, palavras sem nexo. Dentre essas palavras, ele parecia pronunciar alguns nomes de mulheres. Ao menos, foi o que ela pensou. Ela, porém, nada lhe disse. Ah, naquela noite ele explicitou os nomes! E eram, sim, nomes de mulheres. Ela os ouviu muito bem. “Marta”. “Ana Helena”, “Suzana”. Jean Carlos estaria tendo uma espécie de pesadelo. Ele balbuciava: “Marta... filhos...”. “Ana Helena... filho”. “Suzana... filha...”. E muitas outras palavras sem sentido. Mônica jamais poderia acreditar que seu marido a trairia. Não. Jean Carlos, não. Todavia, uma Suzana foi colega de turma dele e, antes dela, eles tiveram um flerte. Algumas amigas diziam que ela, mesmo casada, nunca o esquecera. Ela não acreditava. Ele tinha uma assessora chamada Marta. Muito saliente para o gosto dela, embora ela não acreditasse que algo pudesse acontecer entre eles. Não. Com Jean Charles, não. E Ana Helena, quem seria? Ela não conhecia nenhuma Ana Helena.
Teria Jean Carlos filhos fora do casamento? Com aquelas três mulheres? Por que em sonho, ou pesadelo, ele se referia a elas? Por que ao falar nelas ligou o nome de cada uma às palavras “filho, filha e filhos”? Rachel, sua irmã mais velha, cujo casamento que era tão ajustado, ou ao menos assim parecia, desmoronou quando ela soube que o marido tinha outra mulher com dois filhos, em Maceió, onde ele também trabalhava como engenheiro. Rachel sempre alertava Mônica: “Tenha cuidado! Com um juiz bonitão como esse deve ter um monte de mulher se jogando pra ele. Olho vivo, mana!”. Não poderia ser. Mônica afligiu-se de repente. Acordou Jean Carlos. Ele, aturdido, soava em bicas, embora o ar-condicionado estivesse ligado. Espantou-se com a cara de choro da mulher. Com a luz acesa. “O que foi? O que aconteceu?”. Ela lhe disse o que ouviu. Os nomes das três mulheres. A referência a filhos. “Eu acho que estou tendo um pesadelo, minha flor única!”. Era assim que ele gostava de chamá-la. “Minha flor única!”. Ele arrematou ainda espantado: “Eu com outras mulheres? E com filhos? Ah, meu Deus!”. Quis sorrir. Ela o conteve. “Jean Carlos, você não me deve uma explicação?”. E ele: “Sim, devo-lhe sim!”. Quase cambaleando, ele saiu do quarto e, logo depois, retornou com alguns processos nas mãos. “Aqui estão os processos. Ações de pensão alimentícia. Os requerentes são Ana Helena e seu filho, Suzana e sua filha, e Marta e seus dois filhos. Foram os últimos processos que eu despachei antes de dormir”.
O juiz, assoberbado de trabalho, tinha sonhado com os processos e proferido, no sonho, os nomes das partes. Nada mais. A mulher do juiz continuava sendo a sua única flor.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 09 de abril de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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