Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 15 de maio de 2016

O garanhão e a mocinha assustada :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

Conversando com um padre já bem andado no serviço divino, disse-me ele que, nos tempos em que esteve no Seminário, estudando filosofia e teologia, os seminaristas eram advertidos para não andarem com as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Por questões óbvias para os formadores. Por razões absurdas para os seminaristas. Os seminaristas não podiam tocar no que não deviam. Eram situações assim que espantavam as pessoas.
Nesse ritmo, embora em situação um tanto quanto diferente, eram educadas as meninas que estudavam em colégios de freiras. Contou-me uma daquelas meninas hoje uma devotada senhora ao serviço de uma destacada pastoral numa determinada diocese, que as moças de seu tempo eram orientadas, dentre outras tolices, a jamais tomarem assento no lugar antes ocupado por um homem, enquanto o lugar não “esfriasse”, sob o risco de a moça engravidar. Que absurdo! Engravidava-se, assim, em face da “quentura” deixada por um homem no assento. Que compreensão estapafúrdia!
Pois bem. Essa dedicada senhora contou-me ainda que, certa vez, recentemente saída do colégio das irmãs de caridade, foi trabalhar numa missão pastoral junto a camponeses. E eis que, numa tarde de segunda-feira, adentraram ao local onde ela exercia sua tarefa, dois camponeses, que queriam angariar um pedaço de terra para cultivar. Ela, então, começou a preparar a devida papelada. Fez as perguntas corriqueiras a um deles, que foram prontamente respondidas. Quando chegou a vez do outro, este começou a dizer que era pai de cinquenta e um filhos. A moça arregalou os olhos, espantada, e não conseguiu dizer nada por uns segundos ou minutos, ela não lembrava ao certo o lapso de tempo que durou o espanto. Cinquenta e um filhos! O outro camponês, diante do espanto da moça, interviu e disse que ele tinha casado três vezes, além de ter, ao longo de uns trinta anos, alguns quebra-galhos. O sujeito era mesmo um pai d’égua. Um verdadeiro pai de chiqueiro. Para a moça, um descarado. Um perigo à vista. Cinquenta e um filhos. Afora, claro, os que morreram em tenra idade, como soia ocorrer naqueles tempos.
Cessado, em parte, o espanto, a moça começou a preparar a papelada do garanhão. Perguntou isso, perguntou aquilo, ele foi respondendo e ela, arisca, anotando tudo. Como podia ser, pensava a moça, enquanto tomava notas, um sujeito ser pai de cinquenta e um filhos? Como eram criados tantos meninos e meninas? Ao Deus dará? Se ele não tinha sequer uma beira de terra para plantar, como poderia dar conta de tantas bocas? Onde ela fora se meter, fazendo aquele trabalho junto à Igreja? Melhor teria sido, talvez, seguir a carreira religiosa, como tantas vezes lhe propuseram as irmãs, no colégio. Porém, ela queria ser assistente social. Queria cuidar de pessoas, mas, de forma livre, num trabalho que lhe satisfizesse. Queria ter a sua família. Admirava a vida religiosa, mas, no fundo, no fundo, não a queria para si. Não tinha vocação para o hábito. Gostava da Igreja. Sempre quisera fazer trabalhos pastorais, como o que fazia naquele momento. Entretanto, a vida religiosa não lhe atraía. Quando entrou no colégio, vinda do interior, até que achava muito bonito o hábito das irmãs. Chegou a sonhar vestindo um daqueles. Aos poucos, todavia, o sonho foi-se esvanecendo. Restou o gosto pelo trabalho social. Restou e, aliás, cresceu, o gosto pelo trabalho na Igreja. E ali estava ela, já cursando serviço social, e ajudando naquela pastoral, voluntariamente.
E assim pensando, a moça concluiu a ficha do pai dos cinquenta e um filhos. Como ele não sabia assinar, como o outro também não, ela pediu que ele melasse o polegar direito na almofada de carimbos com tinta azul e o colocasse no local que ela indicou. Pronto. Eles deveriam aguardar um chamado da Igreja. O bispo tinha adquirido uma fazenda que deveria ser loteada, sob a supervisão da Igreja. Ao longo de dez anos de fixação das famílias sorteadas, a Igreja daria o título definitivo de propriedade. O tempo citado era para que as pessoas, deveras, se fixassem na terra, cultivando e dela retirando o sustento para a família. O senhor bispo não queria que, mais cedo ou mais tarde, os beneficiados dessem para se desfazer dos lotes respectivos, como acontecia em casos parecidos, pelo país afora.
Ao dar tudo por concluído, a moça repetiu para os dois camponeses que aguardassem um chamado da Igreja. O primeiro agradeceu e a cumprimentou com um aperto de mão. O segundo, o pai dos cinquenta e um filhos, fez menção de também apertar a mão da moça, mas esta recusou dar-lhe a mão. Ficou sem jeito. Gaguejou, enquanto a mão do garanhão estava estendida. “Desculpe, senhor, mas eu não posso apertar a sua mão”. E ele, em resposta: “Ora, mocinha, a minha mão está cagada?”. Constrangimento total de lado a lado. Ela não disse mais nada e, cabisbaixa, entrou na sala contígua. Nunca mais ela o viria. Uma semana depois do episódio, ela foi transferida para fazer um trabalho na cúria metropolitana.
Diante da narrativa, eu lhe perguntei a razão de não ter apertado a mão do camponês pai d’égua. E ela, passando a mão direita na cabeleira grisalha, respondeu-me: “Seu Zé Lima, eu era tão tola! Eu tive medo de engravidar com um aperto de mão. Eu pensei, naquele momento: vá ver que eu vou ser a mãe do quinquagésimo segundo filho deste homem”.  
Coisas da vida. É mole?

 

(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 15 de maio de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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