Uma surra de duzentos contos :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Juca de Alfredão do finado Zacarias Teles passou a galope, montado no alazão inteiro, isto é, ainda não castrado. Anastácio de Filipinho não gostava dele. Mas, o fazendeiro era pirracento. Cumprimentou-o. “Boa tarde!”, gritou sem esperar resposta. Anastácio praguejou: “Fio duma égua!”. O céu azul não dava mostra de uma nuvenzinha sequer. Azulão de verão brabo. Também pudera! Era o meado de janeiro. Trovoadas? Nem pensar. Tempo já era sim. Porém, só o tempo. Nada de formação de nuvens, nada de relâmpago nem de trovão. A barra dos dias não prenunciava coisa alguma. Um círculo longe da lua nas noites prateadas? Nem chiste. Dizia-se por aquelas bandas, que círculo longe da lua, chuva perto. Círculo perto, chuva longe. O círculo andava bem pertinho da lua, quase laçando o cavalo de São Jorge. Aquilo dava uma agonia danada. Quase um desespero. Sem umas trovoadas de fim e de início de ano, não haveria água nos tanques e nos barreiros que suprisse as necessidades até o começo do inverno, lá para o fim de março, se viesse em bom tempo, ou, fosse lá quando fosse talvez em abril ou maio. E aí já seria um desespero. Entretanto, o tempo estava destrambelhado. O homem estava mexendo demais com a natureza. O homem queria ser Deus. “T’esconjuro!”, pensou Anastácio, que cuspiu longe uma cusparada do tipo “cagada de pato”, cuspe grosso, escuro, por causa do fumo que mascava, e que uma galinha do terreiro de Zefinha de Ciço Caroço cuidou de transformar em repasto. Anastácio começou a cismar, dizendo de si para si mesmo: “O homem tá desgraçando o mundo. Imagine que dizem por aí que o homem desceu na lua, uns meses atrás! Só se for a lua das ventas dos bestas. Descer na lua... E Deus ia dar poder ao homem pra tanto? Ia nada! Deus é grande, é tudo. E o homem é o que? Um vermezinho qualquer. Verme sem asa, voa?”.
Anastácio de Filipinho Gomes concluiu a azeitada na arma de estimação. Estava bem lubrificada. Era mesmo uma beleza. Arma alemã. Corria o início do ano de 1970. Ano que já começava rachando o chão. A tarde descambava para chamar a noite. E nada do conhecido do Curral Grande. O sujeito se chamava Pedro Manco. Diziam que, no passado recente, ele tinha sido cabra de tocaia lá pras bandas da Serra Negra. Que era metido a brabo, isso todo mundo comentava. Mas, não se sabia no Curral Grande e nos arredores de uma escaramuça por ele praticada. Era preciso uma prova de sua valentia. Logo se saberia.
Não demorou muito, e eis que o homem chegou. Desceu do cavalo castanho ainda com boas carnes, cumprimentou Anastácio e emendou. “Aqui estou, ‘seu’ Anastácio, às suas ordens!”. O anfitrião respondeu: “Pois bem. Vamos logo ao que interessa ‘seu’ Pedro Manco. E o seguinte é este...”. Anastácio pôs o visitante a par do negócio, amiudou a conversa e pediu o preço. Pedro Manco ouviu tudo calado sem mover um músculo do rosto queimado de sol. Não titubeou. Disse que aceitava o serviço e fixou o preço. Quatrocentos cruzeiros novos. Ou, em sua própria linguagem, “quatrocentos contos”. Tudo certo. Anastácio não regateou. Não era homem de pechinchas quando não o era para ser.
Anastácio de Filipinho Gomes foi encarregado por uns parentes de encomendar uma surra bem dada num cabra safado que veio de São Paulo, um neto de Ferreirinha do Fundão de Baixo, que lançou uns olhos sem-vergonha para a filha mais nova de Beto Reis, primo de Anastácio pelo lado materno, que estava acamado com as duas pernas quebradas. E não tinha filhos homens que lhe pudessem valer. Onde já se viu um forasteiro olhar com olhar descarado para a filha de um homem de bem, a ponto de todo mundo ficar falando? Matar não seria preciso. A ofensa não era para tanto. Mas, uma boa surra, daquelas de botar salmoura na pele retalhada, era o que deveria de ser feito. Pronto. O serviço estava acertado. Pedro Manco, homem de passado violento, daria cabo da encomenda. Foi o que disseram. E naquilo Anastácio acreditou. Muitas foram as recomendações. Se Anastácio não tivesse a idade que tinha, quase setenta anos, ele mesmo cuidaria do caso. Porém, não seria prudente arriscar. Se fosse para fazer coisa pior, seria mais fácil. Também, bater num homem, um neto de Afonso Gomes jamais faria. Era coisa pequena demais.
No dia seguinte, Pedro Manco dirigiu-se, ainda manhãzinha, ao Fundão de Baixo, logo depois do Curral Grande, bem pertinho. Coisa de meia légua. Na bodeguinha de Jerome ele foi encontrar o tal paulista de olho safadista. E o sujeito era um rapagão de quase dois metros de altura, uns noventa quilos de peso, lutador de boxe lá no São Paulo. Ele andava mostrando fotos de treinos e de lutas. Ao saber disso, Pedro Manco não se sujeitou. Voltou na mesma manhã à casa de Anastácio. Foi logo detalhando o porte do camarada e a aptidão para a luta de ringue. “Desculpe ‘seu’ Anastácio, mas com aquele tipo eu não posso não. É demais pra mim. Vamos fazer outro acerto. Arranje uma surra de duzentos contos num cabra com quem eu possa me meter e dar conta do serviço”.
Anastácio retrucou: “Quem não dá uma surra de quatrocentos, não dá uma de duzentos, nem de cem, nem de cinquenta contos. O senhor, ‘seu’ Pedro Manco, é uma decepção. Vou procurar outra pessoa. Um cabra com tutano nos ossos, porque o senhor, pelo visto, é pior do que uma galinha choca”. Anastácio disse isso enquanto colocava balas num rifle de papo amarelo, que tinha acabado de azeitar.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 05 de junho de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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