Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 09 de julho de 2016

O PISTOLEIRO, O JUIZ E O PROMOTOR :: Por José Lima Santana

José Lima Santana(*)  jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana ( Foto: Arquivo pessoal)

José Lima Santana ( Foto: Arquivo pessoal)

Fim de uma tarde de quarta-feira. O jovem juiz de direito estava acabando de sentenciar. O igualmente jovem promotor de justiça fizera um bom trabalho. A defesa do réu esmerou-se, mas o jurado, composto por cinco mulheres e dois homens votaram pela condenação. Seis a um. Era o primeiro júri a condenar alguém naquela comarca sertaneja. Um feito histórico, que, por certo, ornamentaria os currículos das duas jovens autoridades forenses. Um feito e tanto. Merecia uma celebração. Os dois jovens marcaram uma caranguejada para o próximo sábado, na capital. Eles e as duas jovens esposas, uma médica e a outra funcionária pública federal. Ambas estavam grávidas dos respectivos primeiros filhos.
Sentença concluída. A defesa, obviamente, apresentaria um recurso. Era o seu direito. Como o réu estava preso, preso continuaria. Até a decisão do Tribunal. Ou até os dezenove anos e cinco meses que pegou na cacunda. Era a primeira condenação que lhe recaía sobre os ossos. Todavia, pelo que se comentava na região, devia ser a sétima ou oitava morte a lhe pesar nas costas. Havia até mesmo quem dissesse serem mais de dez mortes. Sujeito frio. Matador de aluguel. Deveria ser apenas um pouco mais velho do que o juiz e o promotor. Talvez uns trinta anos. Não mais do que isso. Cara de menino, mas de menino tinhoso como quem tinha partes com o zambeta, o pé-de-bode, o malvado dos malvados, o anjo decaído. Durante os depoimentos anteriormente prestados em audiências e naquele dia do júri, o sujeitinho não mostrou nenhum sentimento, nenhuma reação, nem mesmo quando ouviu o veredicto de seis a um contra ele. Frio em todos os momentos. Não movia um músculo do rosto. Era como se tudo aquilo não tivesse nada a ver com ele. Provavelmente, um tipo que preencheria em cheio a teoria do médico italiano Lombroso, exposta no livro “O Homem Delinquente”, no fim do século XIX. Foi assim que o juiz e o promotor aprenderam na faculdade de direito. Teoria, porém, vencida pelo tempo, e desde a década de 1930.
A caranguejada deveras aconteceu. Um sábado para celebrar um feito glorioso da Justiça. Afinal, na década de 1960 e no sertão, um sujeito ser condenado pelo tribunal do júri era, sim, um fato inusitado. As esposas grávidas orgulhavam-se de seus maridos. Jovens, preparados e destemidos. Jovens sem medo de nada. Paladinos da justiça. Eles mudariam a face do sertão. Ao menos, do sertão que se achava sob a jurisdição daqueles dois. Estavam fechando uma cancela aberta: a da impunidade. Os seus filhos, que logo mais nasceriam – um, dentro de dois meses, e o outro, dentro de quatro meses – haveriam de ter orgulho de seus pais, como as esposas o tinham e os louvavam.
Totoinho Seis Balas era o nome do condenado. Ou melhor, a alcunha. O nome de guerra no mundo do crime. O verdadeiro nome era Antônio Carlos Gadelha Tenório. Filho, irmão, sobrinho, primo e neto de afamados pistoleiros da outra banda do São Francisco, do Velho Chico que, nos dias de hoje, parece definhar como se tísico estivesse. A ação do homem sobre o ambiente é tão desastrosa em certas áreas, quanto desastroso é o governante que se deixa corromper ou que deixa os seus auxiliares e aliados se corromperem, surrupiando os recursos financeiros do povo que os elegeu. Esses corruptos não passam de um monte de estrume. Todos eles. Mas, tornando a Totoinho Seis Balas, este apelido lhe fora dado aos dezesseis anos, quando ele matou o assassino de um irmão, numa daquelas decantadas e sangrentas brigas de famílias que outrora foram comuns em várias partes dos sertões. De todos os sertões. O seu revólver de seis balas estava sempre com uma na agulha. Pronto a toda hora, para o que desse e viesse.
O crime pelo qual Totoinho foi condenado ocorreu no povoado Subida do Macaco, não muito longe da cidade que era a sede da comarca. Não foi um crime de mando. Ele matou o sujeito que, um mês antes, tinha assassinado em primo seu. Rixa por causa de desentendimento numa vaquejada. Matou à luz do dia. À vista de muita gente. Prisão em flagrante. Depois do crime, o criminoso ficou tomando umas cervejas na bodega de Dona Zefinha do finado Barnabé. Por isso foi preso em flagrante. Não reagiu à voz de prisão. Muita gente não entendeu aquilo. Se quisesse, por certo conseguiria matar o cabo e os dois soldados. O que muita gente dali não sabia era que Totoinho era afilhado e filho de criação de um policial militar das Alagoas, que chegou a coronel. Respeitava os colegas do seu padrinho e pai. E, ademais, nunca procurou encrenca com a polícia. Ele dizia: “Com raça de soldado não se brinca. Se você mata um, vêm cem”. Portanto, entregou-se sem mais nem menos. Provavelmente, confiava em alguém ou em algo.
Um dia, uns três anos depois da condenação de Totoinho, eis que o juiz e o promotor, que já não atuavam juntos, mas eram compadres cruzados, ou seja, um batizou o filho do outro e vice-versa, encontravam-se em um restaurante da capital, confraternizando-se em face da assunção do juiz à segunda entrância. Conversavam animadamente. Levantavam brindes. Um bom vinho sobre a mesa. De repente, o juiz pareceu reconhecer o homem que estava sozinho na última mesa do restaurante, perto da entrada para os toaletes. Estremeceu. Engoliu um seco. Não podia acreditar no que via. Como podia ser? Então, ele não estava na penitenciária? Não o condenara a dezenove anos e cinco meses? O Tribunal não confirmara a sentença? Que diabo estava acontecendo? Então, discretamente, ele pediu ao promotor que olhasse para trás. Sim. Era ele mesmo. O pistoleiro Totoinho Seis Balas. O olhar fixo neles. Como poderia estar solto, se só se passaram três anos e um mês desde a condenação? Como conseguiu se soltar? Teria fugido? Alguém recebera propina para soltá-lo? Estranho. Muito estranho. E o que fazia ele ali, justamente ali, quando o promotor que o acusara e o juiz que o condenara ali estavam? Exatamente ali? Estranho. Muito estranho mesmo.
O promotor era meio esquentadinho. Ele tinha sido delegado de polícia comissionado por um ano e pouco, como ocorria naquele tempo, antes de assumir a Promotoria. Disse ao compadre juiz que prenderia o pistoleiro naquele momento. Fez menção de sacar a arma da qual não se separava desde os tempos de delegado. O juiz ponderou: “Dr. Marcos Costa, meu compadre, nós temos mulheres e filhos para criar. Somos juiz e promotor. Não somos policiais. Não somos pistoleiros. Vamos dar o fora daqui. É o melhor que a gente faz”. Embora suando frio, o promotor queria fazer-se de brabo. Com muito custo, o juiz conseguiu convencê-lo a irem embora. Pagaram a conta e saíram.
Totoinho Seis Balas também saiu. Ele viu os dois na rua, a pouca distância. Pôs o chapéu na cabeça. O sol estava de tinir. Sorriu o sorriso descarado dos pistoleiros. Jogou fora a ponta do cigarro. Fez movimentos do tipo “abre e fecha” com os dedos da mão direita. E foi caminhando muito lentamente, na direção deles. Muita gente na rua. Dois carros da polícia estacionados bem ali. O juiz e o promotor seguiram sem olhar para trás. O sol estava mesmo de tinir.

 

(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.

Publicado no Jornal da Cidade, edição de 10 de julho de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.

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