BUMBUM DE NENÉM :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Lenaldo Souza Pinto. Lenaldo de “seu” Joãozinho Sete Pregos, “seu” Joãozinho do finado Bertinho da Patioba, primo de certo professor de Química da UFS, hoje aposentado e metido a rezador. Este último sujeito reza o terço e a ladainha de Nossa Senhora que é de cair o queijo. É louvor dali, é louvor dacolá. E tome-lhe reza! Bem. Mas, Lenaldo era também Lenaldo Bumbum de Neném. Cara larga, lisa, mas não era por isso que ele tinha esse apelido. Era porque quando menos se esperava ele soltava cada diatribe pela boca, cada “bagaçada”, que até parecia bumbum de neném, que não avisava quando estava em polvorosa. A coisa vinha de supetão, lambuzando tudo. Assim também era com Lenaldo. Quando ele queria dizer fosse lá o que fosse, quem quisesse que saísse de baixo. Era coice na canela.
O inverno não tinha sido lá grande coisa. Chuva pouca. Fora de tempo. Lavoura? Uns ticos disso, uns ticos daquilo. Feijãozinho de poucas vagens, que na roça se diz “bagens”, e vagens de poucos caroços. Milho? Quase tudo de espigas banguelas. Prenúncio de seca, prenúncio de fome. O sertão não passava daquilo: uns anos bons, uns anos ruins. E ninguém tomava uma providência para valer. Prefeitos? Governadores? Ai, meu Deus! Era tudo um desmantelo da desgraça. Tudinho igual. Sapatos? Quarenta e quatro para todos. E cabiam certinhos em todos os pés. Cambada mais sem jeito! Talvez, Deus era quem sabia mesmo, se pudesse arrumar um ou outro político de valimento por aquelas bandas, por aqueles sertões castigados. A seca era um flagelo. Os políticos o eram muito mais. Mas, contudo, e, todavia, quando um cego perdia um vintém talvez fosse mesmo possível topar com um político bom na serventia para com o povo. Talvez. Isso era coisa de “avaluemos”. Político bom mesmo não se sabia ao certo, mas político um tiquinho menos do que ruim era, sim, bem capaz de se encontrar a cada cinquenta léguas em quadra. E olhe lá!
Pois foi naquele inverno de 1969, ou, a bem dizer, naquela falta de inverno propriamente dito, que se deu o caso no qual Bumbum de Neném seria o protagonista. A ditadura militar que se instalou no Brasil, em 1964, estava no auge. A peia corria solta. O padre Zequinha foi denunciado como comunista tão somente porque participara da posse da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Um sujeito vindo da capital saudara o padre como um agente ativo da Doutrina Social da Igreja, que era a favor dos pobres. Pronto. Um dedo-duro, tipo de gente que, naquele tempo do militarismo não faltava aqui, ali ou alhures, denunciou o jovem padre, o primeiro a tirar a batina por aquelas bandas. Foi muito difícil para uma parte do rebanho do novo padre acostumar-se com um padre desbatinado. As confissões rarearam. A Santa Missa passou a ter minguada frequência de fiéis. As beatas de véu na cabeça sumiram. Dona Dina, que tinha uma voz de taboca rachada, mas, ainda assim, era quem puxava os cantos, largou a Igreja de lado. De vez em quando assistia a Missa na cidade vizinha. “Um padre sem batina? Isto é lá padre!”, vivia a repetir em alto e bom som. Todavia, Dona Mariinha de Têca de Sá Virgínia, antiga zeladora da Igreja Matriz, não arredou pé. Ela não gostava de ver um padre sem a veste sagrada, mas dizia que os padres vinham e iam. “A Igreja de Jesus permanece”, afirmava.
O padre Zequinha, a despeito da arribada de muitos fiéis, não se daria por vencido. Fundou um grupo de jovens. Os jovens, raros no início, começaram a ter boa frequência nas reuniões e até mesmo nas Missas. Pouco a pouco, a Igreja foi se renovando. Cantos alegres, música de guitarra etc. Um espanto, um verdadeiro sacrilégio para as beatas de carteirinha. O jovem padre vivia batendo pernas nas comunidades periféricas e nos povoados. Os mais pobres o acolhiam com alegria. Os endinheirados da cidade, entretanto, lançaram olhos de poucos amigos para o padre. E depois que ele se fez presente à posse no Sindicato, a sua sorte parecia selada. À primeira denúncia, feita à CGI – Comissão Geral de Investigações, braço estadual do famigerado SNI – Serviço Nacional de Informação, seguiram-se outras denúncias, agora feitas ao Bispo. Este, porém, não tomou nenhuma providência contra o padre. Ao contrário, encorajou-o na luta em defesa dos menos favorecidos. “A Igreja tem uma dívida muito grande com os mais pobres”, costumava dizer o Bispo. Na capital, havia quem dissesse que o Bispo era do tipo melancia: verde por fora e vermelho por dentro. Era assim que os conservadores mais radicais designavam aqueles que eles tachavam de comunistas. Bando de insensatos!
Um ricaço da cidade levantou-se em praça pública contra o padre Zezinho. Disse o diabo. Bateu pesado. No bar de Pipiu de Maria Esfola Homem fez-se um ajuntamento de pessoas, que mais parecia um comício dos bons, daqueles que, no passado, a UDN de Manezinho Bocão e o PSD de Totonho da Matinha faziam a terra tremer. O ricaço tirou dos cachorros e botou no jovem pároco. Uma esculhambação. Houve vozes a favor e contra a fala do ricaço. Os que defenderam o padre não fizeram eco. Dois ou três. O resto da cambada grunhiu e latiu contra o padre. Eis que entrou em cena Lenaldo Bumbum de Neném. Em defesa do padre Zezinho. O moço levantou a voz. Apontou o dedo em riste para o ricaço: “O senhor, ‘seu’ Valdomiro Vieira, não tem moral para falar mal do padre. O Senhor enriqueceu às custas de explorar o povo miúdo, de grilar terras, de pesar algodão com peso fraudado, para roubar os roceiros. Todo mundo aqui sabe disso. Todo mundo lhe conhece, mas parece que todo mundo tem medo do senhor, do seu dinheiro, da sua brabeza, que só não mete medo a mim. Não nasci de sete meses. Não me curvo ao senhor nem a ninguém, está ouvindo, ‘seu’ Valdomiro Passa Fome?”. Valdomiro Passa Fome era como o povo chamava, pelas costas, o tal ricaço. Dizia-se que em sua casa roia-se bico de pão seco, dormido, no café da manhã.
O ricaço fez menção de levantar o braço contra Bumbum de Neném. O braço tremeu no ar. Valdomiro começou a suar. Engasgou. Uma baba espumosa escorreu da boca facheada de dentes de ouro. Valdomiro tombou. O corpanzil estatelou-se nos paralelepípedos. As canelas tremeram e esticaram. E foi assim que, naquele dia, Bumbum de Neném tornou-se protagonista do ataque de Valdomiro. Socorrido e levado à capital, o ricaço salvou-se, mas passaria o resto da vida numa cadeira de rodas, entrevado, a boca torta, sem dizer palavra. Na cidade, dizia-se que Bumbum de Neném era o causador da enfermidade de Valdomiro Vieira. Ao passo que ele respondia: “Foi castigo por ele ter falado mal do padre”.
O padre Zezinho foi mudado de Paróquia logo depois da morte do Bispo. O novo Bispo não gostava dos padres que procuravam aplicar a Doutrina Social da Igreja, que tentavam explicar ao povo as boas novas do Concílio Vaticano II. O padre Zezinho mudou de Diocese. Foi preso. Torturado. Mas, jamais deixou de anunciar o Evangelho e de denunciar as injustiças, a exploração do homem pelo homem e a impunidade. Era, na verdade um padre de vida dedicada à oração e à ação. Quanto a Bumbum de Neném, morreria engasgado com uma muriçoca, aos setenta anos de idade. Foi sim. Trepado numa escada, para trocar uma lâmpada na cozinha, uma muriçoca entrou-lhe na boca, atingindo a goela. De tanto escarrar para atirar fora a danada, desequilibrou-se, caiu e bateu com a cabeça na quina da mesa. Não durou uma hora. Por uma ironia do destino, foi enterrado num jazigo vivinho ao de Valdomiro Vieira. De jazigo a jazigo, devem estar discutido muito, acordando os outros defuntos em noites de lua nova.
(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 21 de agosto de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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