Limão Galego :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Limão Galego morreu. Um mundão de gente foi ao enterro. O caixão envernizado de tampa de espelho, por onde se olhar a cara do morto, seguia muito lentamente, arrastando-se pelo chão lamacento entre a Rua do Biriba e a Rua do Caga-Sebo. Limão Galego não sofreu. Não morreu de doença braba, nem de morte matada. Morreu de morte morrida, na cama, sem acordar naquela manhã de chuva miúda. Morreu do coração. Teve lá ele um ataque fulminante, que lhe botou na cova aos setenta e um anos de idade. Deixou mulher, Dona Geralda de Maria Mocinha, e uma penca de filhos e filhas. Todos casados. E casadas. Netos e netas? Uma imensidão. Família que, sozinha, deu para encher a igreja, no tempo em que a missa de sétimo dia ainda era celebrada na Igreja Matriz. Hoje, não. Celebra-se na capela do cemitério.
O defunto provinha de numerosa família das beiras do sertão. Era ele da família dos Cardoso do Araticum. Gente provida de dinheiro e desprovida de medo. Quem, ainda que recém-chegado, não conhecia a fama da família Cardoso, na cidade? Ora... Todo mundo numa quadra de dez léguas para lá e para cá sabia quem era a família Cardoso do Araticum. Gente de fama e de valentia comprovada. Gente trabalhadora. Gente caprichosa nos fazeres. E muito bem aquinhoada nos teres.
De onde vinha o apelido Limão Galego? Bem. É chegada a hora de dizer essa procedência. Certo dia, na feira semanal da cidade, eis que de repente Maurício Verde de Souza Cardoso gritou no meio da rua: “Não usem limão galego. Pra nada. Não usem que o bicho é um poço de malefício”. Essa pregação de Maurício, marido de Dona Tita do finado Pedro Grande, chamou a atenção de todos. Abro um pequeno parêntese para dizer que Dona Tita era a coordenadora da equipe de liturgia da Paróquia do Senhor das Misericórdias. Por isso mesmo, o sermão do padre Virgílio Morcegão, apelido que a gentalha lhe dera em face de suas enormes orelhas de abano, foi direcionado muito mais à viúva do que ao falecido. Voltando ao velho Limão Galego, após a sua falação contra o dito cujo limão, as pessoas passaram a lhe chamar por aquele apelido. No início, ele vociferava ao ouvir a expressão. Aos poucos, contudo, ele foi cedendo. Acostumou-se, como ocorre, em geral, com todos os apelidos e os apelidados.
Falta dizer o motivo pelo qual Maurício Verde de Souza Cardoso voltara-se contra o limão galego. Vamos lá. A sua pregação contra o limão galego continuou dia após dia. Até parecia o anúncio do fim do mundo. Maurício estava mais para o autor do novo apocalipse do que para comerciante de cereais na feira da cidade, que ele era. Pobre limão galego, sem serventia na boca meio banguela de Maurício!
Ora, quais os malefícios causados pelo limão galego, segundo a voz de trombeta de Maurício? Voz, aliás, mais forte do que o soar das trombetas de Josué diante das muralhas de Jericó, como relata o Livro Santo. Segundo ele, o limão galego, tão amarelinho na casca, era um produto híbrido. Hibridez de fundo de quintal. Como assim? Lá vai. Tal produto teria brotado do limão comum, que, num determinado quintal, teve alguns frutos caídos sobre as fezes de algum menino, que fazia suas necessidades fisiológicas debaixo do limoeiro. De tanto cair sobre os dejetos, foi ficando descorado, perdendo o verde e tornando-se amarelo. Na casca, bem entendido! Logo, contaminação pura! E, uma vez contaminados na origem, contaminados estariam por toda a vida. Era uma lorota de Maurício Verde. Conversa sem pé nem cabeça.
Houve, porém, quem botasse fé no dito de Maurício. E não foi pouca gente não. Dor de cabeça para a velha Domitila do finado Fonsequinha. Era possuía no vasto quintal uns cinco ou seis pés de limão galego. E os vendia na janela de casa e na feira. Fazia um bom dinheirinho, pois o limão galego era muito procurado por causa do suco delicioso que dava. Aos poucos, os limões galegos de Dona Domitila foram ficando na bandeja da janela e no saco, na feira. As pessoas que davam ouvidos a Maurício Verde, não mais consumiam os limões galegos.
Um dia, numa roda de animada conversa entre amigos, enquanto Maurício abria a bocarra contra o limão galego, Marcolino de Filó de Zé Pereira disse: “Maurício Verde, não dá pra você deixar de ser tão safado e mentir menos?”. Gargalhada geral. Pedro de Constância de Miralda de Joca Alfaiate emendou: “Vá ver que você também vai amarelar Maurício Verde. Nem que seja na hora da morte, ou depois de morto”. Nova gargalhada geral. Um terceiro, cujo nome eu não lembro, disparou: “Vige, tu vai virar limão galego depois de morto? Danou-se!”. Aquela foi uma tarde de muitas gargalhadas.
Pois bem. Morto Maurício Verde, não faltou quem fosse matar a curiosidade. Olhando pelo espelho do caixão, já na saída do féretro de casa para a igreja, Maria Gomadeira espantou-se e não resistiu: “A cara de Maurício Verde amarelou. Tá da cor do limão galego de Domitila”.
Um gozador, não se sabe quem, escreveu numa tabuleta o seguinte epitáfio e o colocou sobre o mausoléu da família Cardoso: “Aqui jaz Maurício Verde / Vulgo Limão Galego / Que, morto, amarelou / E, agora, pede arrego.// Quem por aqui passar / Um consolo deixe ao defunto / Traga uma limonada / Pra cidade de pé junto.// Espero que muitos atendam / Espero que façam fila / Pra trazer boa limonada / Dos limões de Domitila”.
Só lembrando ao leitor menos atento, que Domitila era a dona dos pés de limão galego, que Maurício Verde tanto combateu. Ah, são coisas do interior, do meu interior e do qual eu não abro mão! Bom fim de semana. Vai uma boa limonada aí? De limão galego, claro.
(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.
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