A VINGANÇA DO FILHO DE AFRÂNIO GUEDES : Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Antônio Francisco de Medeiros e Silva Guedes. Era o nome do rapaz. Filho de Afrânio Guedes, por três vezes prefeito de Barracas, cidadezinha miserável, perdida nos confins do sertão mais seco e mais bruto que se conhecia. Uma perdição de cidade. Em todos os sentidos. Afora os seus mirrados habitantes, ali só ia quem tinha negócio. E negócio importante. Terra mal afamada. Terra de crimes, de rixa de famílias. Terra onde o diabo fez morada. Terra avermelhada. Seca, seca, seca a não mais poder. Chuvas? Trovoadas e bons invernos? Tinha, sim. Mas, apenas de quando em quando. Lavoura ocasional e, ainda assim, diminuta. Umas espigas de milho, mais das vezes banguelas. Um feijãozinho de corda. Um punhado de fava branca ou de casta. Umas ramas de algodão. Tudo isso, quando convinha aos céus derramar um pouco de água. Nem sempre. Gado? Umas criações de bodes. Aliás, bode não era tão difícil assim de criar. O bicho comia de um tudo. Qualquer coisa que o bode podia babujar, ele passava para o bucho. E, pensando bem, uma buchada de bode era uma iguaria supimpa nos confins dos sertões. Era de lamber os beiços.
Afrânio Guedes, filho do coronel Francelino Guedes e neto do major Zé Pedro Guedes, herdeiro de sesmarias, era o filho mais velho das segundas núpcias de Francelino. E Antônio Francisco era o filho mais novo de Afrânio. Igualmente, assim como o pai, filho do segundo casamento. Da primeira mulher de Afrânio sobrevieram onze filhos. Dois não se criaram. Morreram ainda no berço. No décimo segundo parto, Dona Socorrinho morreu de hemorragia. Casado pela segunda vez, Afrânio ainda seria pai de cinco filhos, um homem e quatro mulheres. Antônio Francisco era o último. A ponta de rama. Quando ele nasceu, o pai já contava sessenta e alguns janeiros. Porém, ainda era um velho de acentuado vigor. Físico. Quanto ao outro tipo de vigor, aquele outro tipo, somente Dona Josefina, a segunda esposa, seria capaz de dizer.
As rixas entre famílias dizimavam muita gente. Ora morria um de um lado e logo mais morria um ou dois ou outro lado. E as famílias iam se engalfinhando numa luta sem pé nem cabeça. Já não se sabia mais porque morriam e porque matavam. Naquela década de 1950 era assim. Dizia-se que a briga entre a família Guedes e a família Peixoto vinha do início do século XIX. Rixa por causa de terras. Um Peixoto teria arrancado o rumo de uma porção de terras de um Guedes e a miséria começou. Morte daqui, morte dali, morte dacolá. Mais de um século de desavenças e carnificina. Até o Padre Cícero do Juazeiro, lá no Ceará, tentou intermediar uma trégua, mas foi em vão. As duas famílias rivais eram devotas do Padim.
De fato, os brigões deixaram de se matar por três meses. Porém, quando os trabucos voltaram a cuspir fogo, morreram cinco de uma vez, num tiroteio na feira do Lagamar. Morreram dois dos Guedes e três da família Peixoto. Confusão num boteco de cachaça. Tomando uma pinga, um Guedes cuspiu e o cuspe foi cair a cerca de dois metros das botas de um Peixoto. Aquilo foi interpretado como um desaforo, uma provocação que haveria de merecer reprimenda à altura. Não deu outra. Trabuco na mão, defunto no chão. Outros dos dois lados se achegaram ao boteco. Mais tiros. Mais mortes. Um dos mortos era exatamente o velho Afrânio Guedes, atingido por uma bala traiçoeira disparada por Silvano Peixoto, que, à época do ocorrido, não tinha fechado dezoito anos de idade. E este tal escapou da matança. Menor de idade, ele escaparia do júri, mas, antes, deu no pé.
Quando Afrânio Guedes morreu, Antônio Francisco contava doze anos de idade. Os meios-irmãos deixaram ao seu encargo vingar a morte do pai. É bem verdade que eles tirariam as vidas de mais dois da família Peixoto, após o esfriamento daquela mortandade. Mas, o Peixoto que matara pelas costas o velho Afrânio Guedes haveria de ser morto pelo filho mais novo. E este deveria dar cabo do assassino do pai antes de completar, igualmente, dezoito anos. Para escapar do júri, se preso viesse a ser.
Cinco anos se passaram desde a morte de Afrânio Guedes. Silvano Peixoto mudara-se dali sem deixar rastro. Era o que supunha a família Peixoto. Todavia, não era bem assim. Uma carta de uma tia do jovem assassino seria interceptada pelo carteiro Malaquias de Zé Brito, casado com uma Guedes, prima distante do falecido Afrânio. Endereço de São Paulo. Dentro da carta da tia, vinha uma carta do sobrinho.
Dois dos meios-irmãos arribaram para São Paulo, levando consigo Antônio Francisco, que mal acabara de fechar dezessete anos. O rapaz fora bem treinado. Atirava melhor do que qualquer um dos meios-irmãos. Era fera com um revólver três oitão, canela seca ou cano curto. Tanto fazia.
Silvano Peixoto já era casado e pai de um filhinho. Morava no bairro do Brás. E ali mesmo trabalhava. Morava numa casa de vila. Vila Condorelli, casa nº 5. Não teve erro. Os irmãos Gudes estudaram o ambiente. Seria melhor matá-lo na porta de casa ou a caminho do trabalho? Vingar a morte do pai era o que importava. Detalhes não contavam. O jovem Antônio Francisco, porém, ponderou junto aos meios-irmãos que preferia dar cabo do sujeito dentro de casa. E descreveu a cena: “Vou matar o infeliz quando ele estiver jantando. Vai cair sobre o prato”. Os dois meios-irmãos concordaram. “A vingança do nosso pai está em suas mãos”.
Antônio Francisco esperou o Peixoto assassino, na volta do trabalho à boquinha da noite. Ele já sabia o horário da volta. Os dois meios-irmãos ficaram numa esquina, prontos para agir se preciso fosse. Decerto, não seria. A pontaria do rapaz era certeira. E a sua frieza era igual a uma pedra d’água, daquelas da geladeira de Dona Francisquinha, que ela vendia e tinha de vários sabores. Mal Silvano entrou em casa, sem ter tempo de fechar a porta, eis que o jovem Guedes deu um pinote e entrou com ele, o revólver encostado na cabeça. A mulher de Silvano Peixoto quis gritar, mas o Guedes fez sinal de silêncio com o dedo encostado nos lábios. Ela tremeu, entrou em choque. Nos braços, o filhinho de pouco menos de um ano. O bebê estendeu os braços para o pai. Daquela vez, não os pôde ter.
Antônio Francisco se apresentou. Disse quem era. Silvano respondeu que já esperava por aquilo. Sabia que poderia acontecer mais dia, menos dia. Afinal, as brigas entre famílias sertanejas, que nem sentido tinha mais, pareciam nunca ter fim. “Pode me matar, mas não faça mal à minha mulher e ao meu filhinho. Eu lhe peço pelo leite que você mamou em sua mãe”. O jovem Guedes não disse nada. Olhou para a mulher com o filho nos braços. O seu pai estava morto há cinco anos. O pai daquele Peixoto foi morto por um Guedes antes da morte do seu pai. Muitos Guedes e Peixoto estavam debaixo do chão. Por quê? Para quê? Então, ele disse: “Não vou lhe matar. Vou atirar no chão. Vou cortar uma mecha do seu cabelo e levar para provar aos meus irmãos que lhe matei. Mulher dê-me uma tesoura. Eu sei o que é não ter mais pai. Não vou deixar que o seu filho passe pelo que eu passei. As brigas entre nossas famílias precisam acabar. Deus não fez a gente para isso, para ficar por aí matando e morrendo”. O jovem Guedes disparou três vezes. A vizinhança ouviu os estampidos. Os dois meios-irmãos também.
Uma mecha do cabelo loiro do Peixoto foi apresentada pelo jovem Guedes aos meios-irmãos. Gritos de mulher foram ouvidos. Os três deram o fora, antes que a polícia pudesse chegar.
(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.
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