O voto de Zé Boquinha :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Zé Boquinha era, na verdade, José Amâncio da Silva Mondego. Da Silva era pinto, isto é, nomezinho fubeca de que o vale do Brejão de Baixo estava cheio. E não só o vale. Na Ribeira, no Afogado do Rio, nas Cajazeiras, na Mão da Onça, nos Arrepios de Nêgo e lá se ia. Chovia gente com o nome Silva. Até parecia uma praga. Um tal Silva, sabia-se lá quando foi, deitou semente naquele mundão sertanejo. Semente gerando mais semente e mais semente gerando outras tantas sementes. Resultado: Silva pra todo lado. Porém, Zé Boquinha guardava orgulho por causa do nome espanhol, herdado de um antepassado mais do que distante, mas que permaneceu na família, exatamente pelo garbo de dizer-se descendente de gente da casa real espanhola, como dizia Gertrudes Mondego Costa Lippo, tia-avó de Zé Boquinha, casada com um Costa Lippo, que ninguém sabia quem era. Ao menos, ali na travessia do agreste para o sertão. A gente sertaneja também tinha das suas. Lippo era italiano? Talvez nem fosse nada. Uma invenção de algum escrivão de cartório, que adorava fazer brincadeira com os nomes alheios. Então não era assim, por exemplo, com o velho Sabino Guedes, no cartório do Morro Alto? O danado inventava nomes e sobrenomes.
José Amâncio da Silva Mondego, o Zé Boquinha, mudara-se para a capital. Os filhos precisavam de melhor estudo. E ele era zeloso na questão da educação dos meninos. Fizera um esforço desmedido para se estabelecer na capital. Foi parar com a família numa rua, que, a bem dizer, era um arremedo de rua. Sem pavimentação, o esgoto correndo a céu aberto, com ratazanas passeando a todo instante, para lá e para cá, muriçoca, então, era uma fartura. Até cobra aparecia, vez em quando. Ônibus? Só se pegava andando de casa uns oitocentos metros adiante. Os meninos foram matriculados numa escola do centro. Escola pública, mas, dizia-se, de boa qualidade diante da desgraceira que eram as escolas do governo, naquele tempo. O estudo era tudo, na visão de Zé Boquinha.
Com a rendinha auferida na venda da propriedade rural e do gadinho que ele tinha, pôde instalar uma pequena mercearia. Ia vivendo com a família em ordem de pobre, os meninos aprendendo “para ser gente”, como ele vivia a dizer e repetir. O mais velho, Petrúcio, conseguira um emprego tipo meia-boca, ou seja, de meio expediente, num jornal. Fazia mandados, digitava textos. Tornara-se discípulo, por assim dizer, de um tarimbado jornalista chamado Eugênio. Na redação do jornal, todo mundo gostava do rapazote. Quem sabia se ele não se arrancharia por ali mesmo, seguindo a profissão de jornalista? Petrúcio tinha dezessete anos e era muito vivo. Preparava-se para o vestibular. Era muito estudioso. Dar-se-ia bem. Os outros filhos de Zé Boquinha não ficavam para trás em esforço e vontade de vencer na vida através do estudo.
Certo dia, nas vésperas da eleição municipal, no segundo turno, aliás, na primeira eleição em que inventaram o segundo turno, invenção de jumento, para castigar ainda mais os eleitores, obrigando-os a meterem-se numa cabine eleitoral duas vezes no espaço de poucos dias, para, às vezes, votar nuns candidatos sebentos, isto é, sem muita valia, eis que chegou à porta da mercearia de Zé Boquinha, o candidato Roberto Mondego. Que coincidência! Seria aquele tipo um aparentado de José Amâncio da Silva Mondego? Ao saber do nome do dono da mercearia, o candidato foi logo lhe chamando de primo. O leitor sabe muito bem como são os candidatos, não é mesmo? Pintam e bordam na porta do eleitor. Fazem camaradagem, beijam criancinhas remelentas, abraçam idosos descachimbados, prometem trazer o céu para a terra e muito mais. Pois o candidato Roberto Mondego fez-se primo de Zé Boquinha. Contava com o voto dele, da mulher e do filho, que já votava. O “primo” de ocasião, porém, fez uma exigência para votar no candidato que tinha o seu sobrenome. “Eu só voto no senhor se o senhor prometer botar uma lei para acabar com as mordomias dos vereadores e as do prefeito também. É só o que eu quero”.
Ora, mas aquilo mesmo era o que pregava o candidato Mondego. Acabar com as mordomias. Botar ordem na casa. Fazer todo mundo trabalhar de verdade. Acabar com a farra da gastança. Era preciso sobrar dinheiro para as obras e para melhorar a prestação dos serviços públicos. Pôr um fim na roubalheira que a imprensa denunciava. Varrer a corrupção. Meter gente na cadeia. E, assim, o candidato Roberto Mondego fez um discurso inflamado na porta da mercearia do “primo” Zé Boquinha, um Mondego como ele. Roberto Mondego já tinha sido prefeito da capital. Esperava voltar à chefia da Municipalidade montado no voto do “primo” de ocasião. A conversa do candidato era bonita. Ao terminar o falatório, um “bebinho” aproximou-se dele e pediu uma nica para tomar uma. O candidato abraçou o “bebinho”, disse que dar dinheiro configurava compra de voto e foi-se embora sem dar a nica solicitada. Então, o “bebinho” disse: “Votar num homem que nega uma nica pro mode um sujeito molhar a goela é uma perdição. Depois que ele se eleger, vai mijar nos pobres”. Os presentes caíram na gargalhada.
No dia da eleição, Zé Boquinha votou no outro candidato.
(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.
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