O Vale das Cobras :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
Morro de São Miguel. Povoadozinho mixuruca perdido no sopé dos confins do Vale das Cobras. Alfredão não sabia se havia cobras por lá que pudessem justificar o nome. Ora, quem sabia se o lugar não podia até ser um habitat de serpentes venenosas? E, na verdade, era sim. Porém, de serpentes com duas pernas. Lugarejo de homens sem lei, sem rei e sem fé. Recanto miserável, esquecido por Deus. Antro no qual o diabo fez morada, ao fugir do suplício do inferno. Ali o diabo corria solto aos quatro ventos. E arrebanhava muitos adeptos. Quantos pistoleiros de aluguel mantinham ali o seu canto? Uma ruma. Sem dúvida, em cada família podiam ser contados dois ou três. Era o maior percentual de pistoleiros que se podia encontrar em qualquer parte do Nordeste. Entre eles, todavia, não havia malquerença. Pudera! Se eles brigassem entre si por certo não sobraria viv’alma no Morro de São Miguel.
Alfredo Neves Pitombeira era a graça do rapaz. Bicho taludo com bem dez palmos de altura, corpo fornido e rijo como um tronco de baraúna. Sertanejo morador de muito para lá do Vale das Cobras. Tropeiro bem apanhado na vida, filho e neto de tropeiros. Andava longe de casa, buscando um sinal qualquer que fosse do bandido que matara o seu irmão mais novo, um menino de quatorze anos. Briga? Nenhuma. Rixa antiga? Tampouco. Mera perversidade. O menino vinha pela estrada do Mocambo com um feixe de capim sempre verde na cabeça, comida para os animais mantidos nos fundos da casa, um cavalo e uma mula. O assassino deu de cara com o menino e, sem mais nem menos, exigiu o capim para o cavalo castanho que montava. O menino recusou-se em dar todo o feixe de capim, como queria o estranho. Ofereceu-lhe um molho. Sem mais nem menos, segundo um transeunte que presenciou o fato, o tal sujeito desferiu cinco tiros à queima roupa. E foi-se embora, esporando a montaria e deixando para trás o feixe de capim e o morto. A testemunha disse que o assassino gritara, ao atirar no menino: “Ninguém nega coisa alguma a Zé Pedro do Vale das Cobras”. A ser verdade o que disse a testemunha, ali estava uma pista mais do que segura, a não ser que o estranho estivesse disfarçando ao dizer aquilo, para não ser descoberto.
Alfredão desceu do cavalo à beira do riacho, que era apenas um filete de água cristalina, que corria e cantava baixinho numa diminuta depressão. Era um cantozinho meio tísico aquele do filete de água. O cavalo baixou a cabeça e bebeu. O moço fez o mesmo, depois de abanar a água com as mãos, um pouco acima do lugar onde o cavalo bebia. Satisfeitos o cavalo e o cavaleiro, este olhou para os lados. Até onde a vista alcançava, só se via verdura. Era, sim, o Vale das Cobras assim chamado. Famoso pela bandidagem que ali se escondia, a bem dizer. Alfredão não quisera companhia. Resolvera vingar a morte do irmão por ele mesmo, sozinho. Meter-se-ia num covil, mas haveria de arrancar os bofes do assassino frio, que matara sem dó nem piedade o seu irmão caçulo, uma criança. Poderia até mesmo perder, ele também, a própria vida. Mas, não haveria de voltar para a casa sem a vingança que sua família carecia. Sangue exigia sangue. Aquela era a lei das terras sem lei.
Adiante, após andar mais ou menos uma hora, Alfredão deu com uma mulher que lavava roupa num poço, formado no leito do riachozinho de canto tísico, à jusante. “Boas tardes, dona!”. A mulher respondeu meio assustada: “Boas tardes...!”. Àquela hora, o sol começava a descambar para, dali a pouco, cobrir-se com os véus da noite. O poente já começava a tingir-se de vermelho e dourado. “Vosmicê conhece por estas bandas um moço de nome Zé Pedro?”. A mulher não respondeu imediatamente. Passaram-se alguns segundos. “Conheço não senhor”, respondeu a mulher. Naquele instante, alguém falou por trás de Alfredão: “Eu sou Zé Pedro. E vosmicê quem é, forasteiro?”. Alfredão manobrou o cavalo, virando-se para o sujeito. “Eu sou irmão do garoto que vosmicê matou faz uma semana, lá na estrada do Mocambo. E vim aqui buscar a minha vingança”. De rifle em punho, o assassino, que mascava uma capa de fumo, atirou fora uma cusparada escura. Mirava a cabeça do cavaleiro, cujos miolos logo, logo seriam esparramados. “Então, eu vou matar dois cachorros sarnentos da mesma laia, é?”. A mulher que lavava roupa mais do que depressa se escondeu atrás de uma árvore. E gritou: “Tenha cuidado, Zé Pedro!”.
Alfredão manteve-se calmo, mirando a mão do celerado, posta no gatilho. No seu coldre, o revólver calibre trinta e oito e ao lado direito da sela, o rifle papo amarelo. Ele era muito ligeiro no gatilho, embora nunca tivesse atirado em ninguém. Apenas gostava de praticar e só matava caça, miúda ou graúda. Não era um pistoleiro como aquele que estava ali, todavia, por certo, não faria feio num duelo do velho Oeste, como nos filmes de “coboio” que ele assistia na cidade, quando para lá se dirigia a cada dois meses, para ver a namorada, sua prima em segundo grau. Moça bonita, prendada, que muitos marmanjos da cidade desejavam, mas que não chegaria para o bico de nenhum deles. Seria sua esposa, a mãe dos seus muitos filhos, como ele os desejava ter. Naquele instante, e por um átimo, Alfredão pensou em Maria Clara. Ele não haveria de morrer ali pelas mãos sujas do pistoleiro Zé Pedro. Não! Maria Clara não derramaria lágrimas por um namorado defunto. A Virgem não haveria de permitir.
O assassino do irmão de Alfredão sorria um rizinho cínico. Atirou outra cusparada escura, maculando a grama verde. Os comparsas o chamavam de Zé Pedro Tiro Certo. Ele manobrou o gatilho do rifle e disparou na certeza de uma borrifada de miolos melaria a grama verde. Bang! O tiro, contudo, saiu a esmo, no instante mesmo em que Alfredão derreou o corpo para o lado esquerdo do animal, que se espantara com o estampido, e já com o revólver em punho. Não precisou atirar. Zé Pedro deu um pinote e largou o rifle. Uma cobra coral acabara de picar a sua perna direita. Ele caiu. Soltou um urro medonho. Gemidos... As suas pernas começaram a tremer. Os gemidos diminuíram. Os olhos foram se fechando. Um filete de sangue começou a escorrer pelo canto esquerdo da boca. A mulher que dissera não conhecer Zé Pedro e que se escondera atrás da árvore, aproximou-se dele, soluçando: “Ai, meu filho! Ai, meu filho!”. A mãe amparou no colo o filho pistoleiro, que morria. Alfredão teve pena da pobre mulher. Afinal, uma mãe era sempre uma mãe. Ele, então, fez o sinal da cruz e manobrou o animal que cavalgava.
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Peço vênia aos leitores para dizer que recebi uma mensagem do eminente jurista capixaba João Baptista Herkenhoff, cujos livros, ou alguns deles, são meus velhos conhecidos, e, ao menos o livro “Fundamentos do Direito”, é conhecido pelos meus alunos da disciplina Introdução ao Estudo do Direito, pois dele eu faço uso em minhas aulas, há muitos anos. O mestre, que eu não conheço pessoalmente, elogiou o meu artigo “O fuzil e o bico do urubu”, publicado no JORNAL DA CIDADE e no CLICK SERGIPE, em setembro de 2015. Disse assim o jurista: “Li hoje seu artigo, através da internet: O fuzil e o bico do urubu. Seu estilo é muito agradável. Além disso, tem a arte de colher as coisas interessantes do cotidiano. Parabéns”. Ora, é uma grata surpresa, uma alegria e uma honra para mim, poder ser lido e apreciado por alguém de tão longe da nossa terrinha, como o Dr. Herkenhoff, jurista de escol, professor e magistrado aposentado, que está com a idade de 80 anos. Obrigado ao Mestre, por figurar no rol dos leitores dos meus escritos tão simples. E obrigado a todos que conseguem ler o que eu escrevo.
(*) DIÁCONO. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL, DA ASLJ E DO IHGSE.
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