Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 17 de fevereiro de 2017

RATO DE IGREJA :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Imagem: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Imagem: Arquivo Pessoal)

Chico de Mariinha do finado Marcolino Braço Forte era o sacristão da Matriz de Timbaúba. Sujeito de meia idade, magricela, tão magro, que era apelidado de Vara de Virar Tripa. Solteirão. Não devia medir menos de uns dois metros e um pouquinho. Um verdadeiro varapau. Fizesse na cidade um filme de terror, e ele, sem dúvida, seria o vampiro desnutrido. Pobre coitado! Contudo, era uma pessoinha do melhor quilate. Zeloso com as coisas da Igreja, prestativo como ele só. Um servo de todos. Entrava padre, saía padre, e Chico de Maririnha mantinha-se firme no seu posto. As imagens ali existentes eram cuidadosamente limpas todos os dias. Os vasos sagrados, as alfaias, tudo na mais perfeita ordem. Tudo muito bem cuidado. 

O sacristão carregava nas costas uma giba, um defeito de nascença, que, claro, com o passar do tempo, foi crescendo até ficar do tamanho de uma jaca de soberbo crescimento. Os malandros diziam que se a giba explodisse, desprenderia energia suficiente para desmantelar um pedaço da cidade. Conversa de quem não tinha o que dizer, nem o que fazer. Chico de Mariinha passava o dia todo na Matriz. E a noite. Às vezes até ele dormia na sacristia, quando tinha alvoradas em dias festivos. As alvoradas ocorriam às 5 horas da manhã com repiques de sino e foguetório. Além de dobrados militares executados no velho aparelho de som, adquirido pelo Padre João Pedroso Mergulhão há quatro décadas, mas ainda nas mais perfeitas condições de uso.

De tanto passar o tempo na Matriz, o sacristão Francisco Leite da Silveira, seu nome de registro civil, era também apelidado de Rato de Igreja. Alcunha muito apropriada para ele, segundo a língua ferida da beata Dôra de Zé Vicente, uma viúva faladeira, que falava de Deus e do mundo, não poupando nem o seu finado marido, um homem de bem, que bateu as botas no exato dia do aniversário da mulher. E esta o maldizia por lhe ter tirado a oportunidade de celebrar o dia do seu nascimento, como ela gostava de fazer até o dia da morte de Zé Vicente. Dali por diante, ela não mais o celebraria. Celebrar o aniversário no mesmo dia em que o marido se foi desta para  melhor, não convinha. Por isto mesmo ela o maldizia. Pobre Zé Vicente que sofreu em vida ao lado da mulher faladeira e sofria depois de morto, se era que morto sofria após bater a caçoleta. Segundo o Padre Marciano, sofria, sim, as almas que baixassem ao fogo do inferno. Podia ser. Chico de Mariinha odiava ser chamado de Rato de Igreja. 

Dôra de Zé Vicente não gostava de Chico de Mariinha. Ela perseguia o coitado do sacristão. Ninguém poderia negar que ela, apesar da língua solta, era uma das pessoas que mais colaboravam financeiramente com a Paróquia. Bem aquinhoada, o marido deixara uma belíssima pensão, pois fora funcionário da antiga Coletoria Federal, proprietária de várias casas alugadas, comerciais e residenciais, os filhos todos casados e bem de vida, sobrava-lhe dinheiro. Daí a sua boa contribuição mensal para a Paróquia, no tempo em que ninguém, na Igreja Católica, falava em dízimo. 

A desavença entre o sacristão e a beata era voz corrente na cidade. O Padre Marciano nada podia fazer. De um lado, tinha em grande conta e consideração o seu sacristão. Do outro, não suportava o falatório da beata, mas dependia da contribuição da mesma. Estava entre a cruz e a espada. Em cima do muro. E não havia possibilidade dele descer do muro. Dali, dizia o sacerdote, podia observar melhor as coisas. O mesmo ele dizia em relação às forças políticas da cidade, que tentavam, em vão, arrastar-lhe para os palanques, ou, ao menos, para que ele dirigisse umas palavras aos fiéis, recomendando este ou aquele candidato. “Um servo de Cristo não deve se meter em politicagens”, vivia a repetir. Mas, quando alguém argumentava que o Padre Fulano, ou o Padre Beltrano fazia política abertamente, ele retrucava: “Eu sou o Padre Marciano Félix de Mendonça Porto. Não sou Fulano nem Beltrano”. 

Deu-se que, um dia, o sacristão parecia ter amanhecido atravessado. Dormira na sacristia, no chão duro. Tivera pesadelos. Noite terrível. Sonhara com a morte. Sentindo ainda na boca o amargor da noite de dono, a papa dos anjos no canto da boca, o hálito carregado, verdadeiro bafo de onça, e a remela no canto dos olhos, eis que alguém bateu à porta do fundo da igreja, exatamente na porta que dava acesso à sacristia. Quando Chico de Maririnha abriu a porta, eis que lá estava de sombrinha na mão, pois chuviscava, Dôra de Zé Vicente, a beata faladeira. Esta, fora procurá-lo em casa, mas fora avisada por Dona Mariinha que o filho dormira na igreja. Ela sonhara com o fim dos tempos. Uma doidice! Coisa feia. Muito feia. Precisava rezar o terço aos pés da imagem da Virgem, antes que o mundo se acabasse. 

Ao vê-la, primeiro, o sacristão estranhou aquele arremedo de chuva. Segundo, às cinco e pouco da manhã, aquela mulher de língua de trapo estava ali a lhe importunar. Logo naquela quinta-feira, que ele não tinha dormido bem. A sua fisionomia estava ainda mais pálida do que de costume. As bochechas escavadas, uma cara de fome danada. Como que assustada com a cara ainda mais feia do que o normal, a beata espantou-se e matraqueou: “Você bem que assenta com o apelido de Rato de Igreja. Tá com cara de quem passa fome. E rato de igreja passa mal, pois só tem toco de vela pra comer”. Aí não prestou, não. O sacristão subiu nos tamancos. Rogou uma praga: “Tomara que uma chuva braba lhe soverta nas profundas do inferno, sua bruaca velha, sua beata de meia tigela, sua infeliz da costela oca, representante do diabo”. 

Dôra de Zé Vicente reagiu à altura. Lascou com o sacristão. “Uma ventania pior do que a que derrubou o mercado do Lajeado vai lhe carregar para o fundo do mar sem fim, seu Rato de Igreja, seu morto de fome”. Choveram impropérios de lado a lado. Pragas para lá e para cá. Nem pareciam cristãos, aqueles dois. 

O chuvisco aumentou. Fez-se chuva braba. Dilúvio. Dôra de Zé Vicente correu para casa. Ou tentou. O dia fez-se breu. Uma noite estranha abateu-se mais do que depressa sobre a cidade. Os bueiros do escoamento das águas pluviais não deram conta da enxurrada. Estouros por todo canto. Na Rua do Beco de Baixo, travessia para a casa da beata de língua solta, irrompeu uma lâmina d’água como se fosse um tsunami. Naquele exato instante, Dôra tentava atravessar a rua. Escorregou. A água que descia veloz a encobriu. Ela desapareceu num redemoinho. Sumiu. 

No mesmo instante em que Dôra era arrastada pelas águas, uma ventania com força de furação desceu sobre a Praça da Matriz. Chico de Mariinha fez carreira para casa. Fora alcançado pela ventania bem em frente à casa comercial “A Vencedora”, de “seu” Humberto. A ventania levantou o sacristão magricela como se levantasse uma pluma. Rodou com ele no ar e desapareceu. Desapareceram o sacristão e a ventania. De pronto, tudo voltou ao normal. Do mesmo modo, o corpo de Dôra de Zé Vicente escafedeu-se. E o aguaceiro cessou.

Nunca mais se teve notícias de Dôra e de Chico de Mariinha. Nenhum sinal dos corpos. Nenhum rastro. Nenhuma notícia dos dois, vinda de fora. Sumiram como por encanto. Durante anos, o sumiço dos dois foi o assunto predileto das pessoas. Cruz-credo!

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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