Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana - jlsantana@bol.com.br
Fonte: José Lima Santana
Pub.: 21 de fevereiro de 2017

O JOVEM ADVOGADO :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Imagem: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Imagem: Arquivo Pessoal)

Gravata larga. Listrada. Barata. Contrastava com as gravatas do juiz e do promotor, mais daquele do que deste. O magistrado era de “boa” família, de gente metida na política há décadas. Pai, avô, tios e tios-avôs prefeitos e deputados. Um deles chegou ao Senado, na década de 1920. Pessoas de posses. Fazendeiros. Plantadores de cana. Usineiros, no passado. Nome de família pomposo. No conhecimento jurídico, o juiz era quase uma toupeira. O promotor era mais modesto. Família de funcionários públicos, o pai e a mãe. O pai era da Coletoria Federal. A mãe era dos Correios. Vestia-se com aprumo, mas, neste quesito, não chegava aos pés do juiz. Ternos bem talhados, os do juiz. Camisas de seda e gravatas italianas. E o advogado? Ora, era um daqueles casos raros, da época, em que um pobre tentava ascender socialmente pelo estudo. O pai era um pequeno sitiante, suando muito para botar o bocado em casa, a fim de alimentar doze bocas. A mãe, professora da rede municipal de ensino, ganhando uma miséria e, ainda por cima, recebendo com atrasos. Vida apertada. 

Advogado recém-formado. Terno preto. Lavado semana sim, semana não. Único terno. Camisas de algodão. Fresquinhas. Baratas. Iguais à gravata larga, vermelha de listras negras. Primeira vez naquela comarca. Fora pessimamente recebido pelo juiz gordo com pose de lorde falido que não dava o braço a torcer. O juiz não era falido. Ao contrário. Mas, que tinha pose de lorde falido, isso lá tinha. Um lorde falido não tem mais o olhar de lorde, porém, mantém a fleuma. O porte impassível. Assim era o juiz. Sem contar o anelão no dedo com uma pedra vermelha tão grande, que parecia estar saltando fora do aro de ouro. O olhar di juiz, porém, era um olhar mortiço. Diziam as más línguas dos Fóruns que o magistrado tinha a testa enfeitada. E ele sabia. 

Primeira ação impetrada pelo advogado. Primeira petição. Batida na máquina Remington portátil, comprada de terceira mão. A fita enganchando de vez em quando. Mas, era o começo. Todo começo era passível de tropeços. O livro com modelos de petições cíveis e criminais ajudou um pouco. A família orgulhosa com o primeiro neto de Zé Pedro do Catolé formado em curso superior. E, logo, em Direito. Um dos sonhos de consumo das classes menos privilegiadas. Esposa e um filhinho. O advogado estreante casara muito cedo. No início do curso. Antes, trabalhava como linotipista de um jornal. Trabalhava pela noite. Estudava pela manhã. Chegava à Faculdade caindo de sono. Dera um duro danado, porém, a primeira etapa estava vencida. A formatura. Agora, começava a etapa seguinte: a vida advocatícia. E ali estava ele, mal visto pelo juiz. Diziam as más línguas, no Fórum improvisado pela Prefeitura Municipal, que o juiz só atendia bem a dois advogados: um figurão da capital, afamado em todo o estado, e um primo, como ele, de mirrada expressão jurídica. 

Apesar da cara feia do juiz, o novel advogado foi adquirindo uma pequena clientela. Causas pequenas. Duas ações de execução fiscal, uma de usucapião, três de retificação de registro civil, uma defesa penal em lesão corporal. Tudo isso no primeiro mês. Nada mal para um iniciante não bem recebido pelo juiz. Aquela comarca situava-se na cidade de seus pais, tios e avós. Logo, a mais adequada para ele começar a fazer carreira. Se não fora brilhante como aluno, era, sem dúvida, acentuadamente esforçado. Em tudo que fazia. Outras ações, miúdas, foram chegando. Um dinheirinho curto foi chegando também. A mulher era professora da rede estadual com carga horária de 200 horas mensais, ou seja, trabalhava em dois turnos. Ela segurava a barra da casa. Cobria mais da metade das despesas. Uma mulher e tanto. Namorada desde a adolescência. Ela compreendia que, aos poucos, ele se firmaria na profissão. Ela até ajudava a pagar parte da prestação do fusquinha verde abacate comprado de segunda mão, embora quase novo. Só tinha dois anos de uso. Motorzinho danado de bom. Com o fusquinha, ele vararia as estradas do sertão ainda empiçarradas. Asfalto, nem pensar! Muitos seriam os para-brisas quebrados. 

Livros de Direito somente os básicos. Os códigos. De doutrina, um ou outro livro. Poucos, além dos que pôde comprar durante o curso. Dava para o gasto. Todo início era assim mesmo. Aos poucos, a situação haveria de se ajeitar. Ele se ajeitaria na vida. Ansiava por fazer um júri. No sertão daquele tempo, advogado só se firmava se ganhasse júris. Era assim: “Doutor, quando o senhor cobra pra rasgar o meu processo?”. Um dia, dizia-se, naquela comarca, um advogado aloprado rasgou, sim, um processo, literalmente. Surrupiou o dito cujo do cartório sem carga nem nada. Deu sumiço nele. Cobrou um dinheirão. O escrivão, coitado, acabou pagando o pato. A Corregedoria bateu pesado. Coisas do sertão. Coisas dos tempos idos. 

O jovem promotor de justiça era camarada. De fino trato. Gostava de dialogar com o advogado, de trocar ideias sobre a teoria geral do Direito, depois das audiências, quando sobrava tempo para tanto. O juiz, não. Jamais trocou com ele uma única palavra fora da sala de audiências. A aristocracia não tinha boca para a plebe. Nem olhos. Nem ouvidos. 

Audiência de instrução. Era o caso de lesão corporal. Artigo 129, caput, do Código Penal. Oitiva de testemunhas. Processo besta. Por causa de uma bebedeira, um sujeito de bofes mais esquentados desferiu um golpe de faca no braço da vítima. Lesão pequena. Um corte diminuto, quase de raspão, que não impossibilitou as atividades do fendido por mais de trinta dias, nem coisa pior. As testemunhas disseram que o ofensor não prosseguiu na contenda, após desferir o golpe, por vontade própria. Retirou-se do local. O juiz indagou ao promotor e ao advogado se eles poderiam aduzir as alegações finais, oralmente, para que ele proferisse a sentença, ali mesmo. O promotor concordou. O advogado também. Afinal, era uma coisa muito simples. Pedir a absolvição. Umas palavrinhas a mais para dar um tom adequado às alegações da defesa. Fazer bonito diante do constituinte.

Pronunciou-se o promotor. Pediu a aplicação da pena mínima. Dada a palavra ao advogado, este hesitou. Ficou calado. Ao juiz, ele pareceu suar. Os olhos da aristocracia quando se voltavam para a plebe conseguiam ver o que os olhos dos simples mortais jamais enxergariam. Silêncio. Trinta segundos. Um minuto, talvez. O juiz, arrogante, com o aguilhão afiado para ferir o jovem advogado, disparou: “Doutor, o senhor não sabe o que vai dizer, não? O que foi que o senhor aprendeu na Faculdade?”. Levantando-se, o advogado respondeu: “Estou apenas pensando, doutor. Tenha certeza que eu não vou dizer besteira”. Aproximou-se do escrivão e disse: “Por favor, abra aspas”. E emendou, ditando letra por letra: “Per digito cognositur leo”. Do alto da poltrona acolchoada e do mais alto da empáfia, o juiz perguntou: “O que quer dizer isto, doutor?”. E o advogado, sereno, com a voz firme e um quase imperceptível sorriso no canto da boca, respondeu, ao mesmo tempo indagando: “O senhor não sabe latim, não, doutor?”. A quase toupeira não sabia. 

Tradução? O advogado a fez: “Um leão é reconhecido pelo dedo”. Quem mandou a quase toupeira tripudiar do jovem advogado de gravata barata? E aquele foi só o começo de uma vida profissional bem sucedida, cinco décadas atrás. 

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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