O HOMEM DO TEMPO :: José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
No trabalho, na porta da escola dos filhos, na rua, em todo lugar, todo mundo passou a brincar com ele: “Olhe lá! Não vá perder o emprego, hein?”. Foi um dia infernal. Até Dona Guilhermina, a sogra, que nunca nutriu por ele muita simpatia, apesar de já estar casado com a filha dela há mais de quinze anos, soltou-lhe esta nas fuças: “Se eu fosse você me mudava para um deserto. Lá não chove mesmo. Aí, você não ia errar uma”. Ele teve vontade de esganar a velha. Dela ele também não gostava. Eram elas por elas. Com o falecido sogro tinha sido bem diferente. O Dr. Medeiros era um homem de qualidades, tão diferente da mulher, uma farofeira, uma bisbilhoteira, uma peste. Cascavel de sete guizos!
Naquela segunda-feira ele estava abatido. A última previsão, a da sexta-feira, dava conta de um aguaceiro em todo o estado. Até no sertão brabo cairia muita chuva. De fato, no litoral caíram uns canecos de água. Chuvinha rala, coisa de uns dez minutos, se muito. No resto do estado até que se formaram umas nuvens promissoras, aqui ou ali, mas, água descendo do céu, nem um pingo. E o verão estava mesmo abrasador. Calorão de trinta e tantos graus. Pouco vento. Mormaço absurdo. Nas ruas, o sol parecia penetrar na pele como espinhos de fogo. Pinicava. Ardia. O suor escorria em bicas. Em todo canto era um sofrimento só. Que Deus tivesse pena dos viventes, pessoas e bichos. No sertão, o gado morria aos embolés. Uma tristeza! Velhos fazendeiros acostumados com as intempéries da vida, não conseguiam segurar as lágrimas diante das câmeras de televisão. Dava pena.
O homem do tempo estava acabrunhado naquela segunda-feira. Abatido. Não foi ao trabalho. Não levou os filhos à escola. A mulher cuidou disso. Não tomou café. Foi ficando em casa enquanto as horas se passavam. Perto do meio-dia, resolveu sair. Pegou o carro e saiu a esmo. Atravessou a avenida da praia. Percorreu uns dez quilômetros. Abriu os vidros do carro, para tomar um pouco de ar. O ar soltou em sua cara um bafo de panela quente destampada. Nenhuma nuvem no céu. Céu azul, muito azul. Parou num barzinho, na esquina que dava para a chácara da sogra, ali pertinho. Sempre que ele passava por ali, tinha vontade de parar porque achava o barzinho uma graça. O pequeno imóvel parecia uma bodega de interior, daquelas bem pintadinhas em cores muito vivas. Deveria, pensava ele, ser muito asseado aquele barzinho. Nunca parou ali porque não bebia. Bebidas alcoólicas? Nunca as ingeriu. O pai, muito rígido, no interior, criou os filhos sem beber e sem fumar. O velho dava o exemplo. Naquilo, os filhos se criaram.
Já passava um pouquinho do meio-dia. Ele parou o carro em frente ao barzinho cujas paredes eram pintadas de cores muito vivas. A frente era de um verde muito forte. As laterais eram bem vermelhas. De um vermelho afogueado, como haveria de dizer Dona Tereza de Pedro Misericórdia, a mãe do homem do tempo. Entrou no barzinho, que era, sim, muito asseado. Parecia um bibelô. Por trás do balcão, uma senhora de cabelos brancos fazia crochê. “Uma cerveja, por favor!”. Pela primeira vez na vida, ele beberia. Sentou-se. A senhora serviu a cerveja. Na parede em frente a ele, um cartaz, tirado de alguma revista, em formato grande, estampava uma bela mulher com trajes de banho de praia, debaixo de um sol a pino. Lia-se esta inscrição: “Não perca tempo. Antes de sair de casa, consulte o tempo”. Era o anúncio de uma emissora de Rádio FM. Ele leu e tomou um gole da cerveja. Tomou outro e mais outro. Pediu algo para comer. Um tira-gosto. A mulher disse o que tinha. Ele aceitou. Não demorou e ela trouxe um prato, que era a especialidade do barzinho de cores vivas: rabada com agrião. Outro prato com salada, outro com farinha bem torradinha e, claro, pimenta malagueta. Ele pediu outra cerveja. Outra mais. A mesinha encheu-se de garrafas. Ele era o único freguês. Olhava o cartaz e já não conseguia ler nada.
O homem do tempo não se aguentava em pé. Foi desbeber, como ele mesmo dizia, no pequeno sanitário que ficava no lado de fora do bar, no oitão esquerdo. Apertadinho. Apenas um mictório construído em alvenaria e revestido com azulejo branco. O sanitário ficava meio esconso, pois a barzinho estava plantado no pé de uma ladeira. Bem abaixo ficavam duas lagoas, que, em épocas de chuvas abundantes formavam quase dois lagos. Naqueles dias, não restavam mais do que dois lamaçais. Cai não cai, ele retornou ao tamborete. Para tomar assento, segurou-se. Uma mão na mesinha e a outra na parede. Com muito custo, ele se ajeitou. Pediu outra cerveja. Era a décima segunda. Estava chapado. Era a primeira vez que bebia. Saíra de casa pensando em fazer uma besteira. Estava cansado. Cansado de muitas coisas. Da sogra que lhe pentelhava. Da mulher que cobrava mais isso e mais aquilo. Das gozações de todos. Os três filhos do homem do tempo, adolescentes, pouco estudavam. Todos os anos, eles ficavam em recuperação. Os três. Gastava mais dinheiro. Eles passavam, mas passavam arrastados. Aquilo o desgostava. Veio tudo à tona naquela segunda-feira. Desânimo. Desespero. Talvez, um início de depressão.
De casa ele saiu com o revólver carregado. Arma registrada, porte de arma em dia. Estava quase certo de fazer uma besteira. Era claro que ele pensava na família, apesar de tudo. Pensava na mãe, que ele ajudava a se manter. Pensava temeroso, no inferno, para onde, segundo lhe fora ensinado, em criança, iriam os suicidas. Teria coragem de meter uma bala na cabeça? Somente porque o tempo não lhe estava ajudando? Tão somente por uma besteira daquela? Ora, ele não era o dono do tempo. Não botava freio no tempo. Porém, as gozações já passavam do limite. Enquanto a dona do barzinho continuava no crochê, ele sacou o revólver e disparou. Um tiro só. Certeiro. Mesmo naquele estado de embriaguez, mesmo pouco enxergando, o tiro atingiu o cartaz com aquela mulher bonita, vestindo um belo biquíni amarelo. A pobre senhora do crochê quase morreu de susto. “O que é isso ‘seu’ moço?”. Ele se deixou arriar sobre a mesinha. E ali ficou. A escuridão invadiu os seus olhos. Sono profundo. A senhora tirou o revólver de sua mão. Ela o conhecia de vista. Conhecia melhor a sogra, quase vizinha.
Ao acordar, no fim da tarde, trovões e relâmpagos estrondavam e incendiavam os céus. Aquela seria a maior trovoada dos últimos trinta anos. Ou mais. Debaixo de chuva forte, o homem do tempo, ainda meio trôpego, saiu do barzinho, gritando: “Um raio que os parta! Um raio que os parta!”. De certo modo, sentia-se vingado.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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