Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 07/04/2017 às 21:56
Pub.: 09 de abril de 2017

O BOI AZUCRINADO E A CAIPORA LAMBANCEIRA :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

Joaquim de “seu” Pedro Costa, apelidado, sabia-se lá porque de Costinha Bosta Seca, estava dormitando na rede armada no alpendre da casa. Pouco passava das três horas da tarde. Joaquim estava cansado. Passara a noite anterior de tocaia, no mato, à espera de uma caça graúda. Caçador ele fora no tempo em que caçar não era nada politicamente incorreto. Bem. Ele e seus dois companheiros de caçada, Zezito de Malaquias do finado Dodoca e Miguelão de Sá Rosa de Zé Catunga, um meio índio, que sumiu no oco do mundo numa noite de tempestade, tinham feito boas caçadas nos últimos dias. Bichos de penas e bichos de pele, os três tanto caçaram que as caças dariam para algumas semanas de farta comilança. Da limpeza dos bichos, acabaria sobrando muitas penas, peles, cascos e muito sangue.
    
Rezava a lenda que a caipora castigava os caçadores que abusavam nas caçadas, matando bichos em demasia, além de suas necessidades de alimentação. Mas, Joaquim, Zezito e Malaquias não davam guarida às crendices do povo. Caipora? Lenda dos nossos índios tupis-guaranis. Ainda segundo a lenda, a caipora era a guardiã da vida animal. Aprontava toda sorte de ciladas para o caçador, sobretudo aquele que abatia animais além de suas necessidades, como já se disse. Afugentava as presas, espancava os cães farejadores, e desorientava o caçador simulando os ruídos dos animais da mata. Assobiava, estalava os galhos e assim dava falsas pistas fazendo com que o caçador se perdesse no meio do mato.
    
Sonhando com belas e gordas avoantes, Joaquim de Costinha Bosta Seca foi despertado naquela tarde de vento brando, prenunciador do inverno que deveria chegar dentro de uns trinta dias, mais ou menos, por um alarido das seiscentas. Algum lambanceiro parecia, montado, correr para lá e para cá. O caçador e pequeno criador de gado bovino mestiço, acordou enfezado. Sem saber quem lhe tinha acordado, praguejou, disse uns mil e tantos impropérios. “Quem é o fio d’uma égua que num me deixa tirar um cochilo?”. Ergueu-se. Espreguiçou-se. Levantou-se.
    
Um boi corria na manga, espécie de cercado onde as vacas leiteiras pernoitavam, aguardando o raiar do dia, para que os bezerros pojassem em suas tetas entumecidas, antes que Joaquim as ordenhasse. “Este mestiço tá doido, Aristides?”, indagou, gritando, o que acabara de acordar. E estava mais mal humorado do que macaco que perdeu o cacho de bananas. O vaqueiro Aristides deu de ombros. Nunca tinha visto um boi correr daquele jeito. Azucrinado.
    
O boi mestiço não parava de correr de um lado para o outro. Era uma carreira desabalada, estranha. Quase em cima da cerca, de um e do outro lado, o boi freava, que dos cascos parecia sair fogo, como se fosse um grande isqueiro que o animal carregasse nos ditos cascos.
    
Joaquim atirou no terreiro uma baita cusparada do tipo cagada de pato. Daquela bem catarrenta. Splesh...! Foi o barulho da cusparada, que uma galinha pedrês do pescoço pelado tratou de aproveitar como saborosa iguaria. Naquele instante, chegou ali, vindo das matas da Zabelê um sobrinho de Joaquim. O rapaz era moreno claro, mas parecia que tinha saído de uma cova, mais amarelo do que um cravo de defunto, fulôzinha mais fedida do que sovaco que não via água há mais de quinze dias. Enquanto isso, o boi mestiço corria para lá e para cá. “Ocê, por mal pergunte, viu alguma assombração, hein, Pitoco de minha irmã Das Dores?”. O rapaz mal podia respirar. Com algum custo, ele respondeu ao tio, como se estivesse dando cor de si: “Uma desgraça, meu tio. Uma desgraça”. Joaquim não acreditava. Parecia que estava tudo uma doideira só. “Num tou alcançando o seu intento, meu fio”.
    
Pitoco, ou melhor, Joaquim Costa Dória Sobrinho, narrou os sucessos daquela tarde. “Tio, o senhor num vai acreditar. Tem uma caipora montada no boi mestiço. É por isso que o bicho está correndo como um louco, para lá e para cá. A caipora me perseguiu na mata e veio dar até aqui. O senhor deve tomar uma providência”.
    
E foi assim, simples assim, que Joaquim de Pedro Costinha Bosta Seca ficou sabendo que uma caipora vingativa estava castigando o boi mestiço, fazendo-o correr como um desalmado, para lá e para cá. Quando um caçador fazia um pacto com a caipora, prometendo-lhe uma capa de fumo, que era deixada sobre um toco seco, mas não cumpria o acertado, ou quando o caçador exagerava na caçada, matando animais para além de suas necessidades diárias, a guardiã da floresta e protetora dos animais silvestres cuidava de dar trabalho ao caçador. A prova do que o povo intuía estava às claras. A caipora montava o boi mestiço, que era devagarzinho quase parando. Naquela tarde, porém, o boi mestiço estava nos azeites.
    
Joaquim acreditou tim-tim por tim-tim no que lhe dissera o sobrinho. “Eu vou dar um jeito de desencantar essa caipora. Ela vai ter que se ver comigo, ou não me chamo Joaquim de Costinha”.
    
Joaquim de Costinha Bosta Seca entrou em casa, mais que depressa. Por uns dez minutos, ele deixou o sobrinho a ver navios, como se navios ali os houvesse. Na volta, ele trazia na mão direita uma garrafa de cachaça Murici. “Esta é da boa. Logo mais, a gente bebe”. Na mão esquerda, Joaquim trazia um embrulho. Era uma pedra azul e um pó vermelho. Açafrão. Ele colocou um punhado do pó sobre a pedra. Aproximou-se do boi mestiço azucrinado. O boi rodopiou, elevou-se sobre o chão. Levitou. Vozes de animais, os mais diversos, foram ouvidas. O boi mestiço desceu. Joaquim soprou de novo o pó vermelho de açafrão sobre a pedra azul da cor do céu.
    
O boi mestiço mugiu como se algo o atormentasse. Empinou-se como boi de rodeio. Deu uns pinotes. Bufou. O pó vermelho o atingiu, em cheio. Foi então que Joaquim viu um indiozinho avermelhado, com cara de lambanceiro, montado no boi mestiço. O indiozinho deu língua a Joaquim. Era uma língua enorme e bifurcada como língua de cobra. Caiporas existiam, sim. Ali estava a prova. O pó de açafrão sobre a pedra azul desencantou a caipora, como, um dia, lhe dissera o seu avô materno, Pedro Mameluco. Joaquim soprou mais pó vermelho sobre a pedra azul. E sobre o boi mestiço, que deixara de correr como um louco. A caipora saltou do lombo do boi mestiço. Com cara de mau, avançou para Joaquim, que recuou dois passos. Ele soprou o último punhado do pó vermelho, que cobriu o rosto da caipora. Esta, por sua vez, sumiu. E pronto. Escafedeu-se por completo. Uma gargalhada zombeteira cortou o ar daquela tarde que findava.
    
Nunca mais Joaquim Costa Dória, Joaquim de Costinha Bosta Seca, foi caçar. Nunca mais. E nunca mais a caipora apareceu. Melhor assim. Acabada a folia daquela tarde, Joaquim abriu a garrafa de aguardente Murici. E dela tomou dois bons goles. O sobrinho e Aristides também.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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