Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 02/06/2017
Pub.: 05 de junho de 2017

UMA MALA CHEIA DE DINHEIRO :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

No sertão não chovia há mais de um ano. Falo de chuva para valer, e não de uns totocos caídos aqui ou ali. Chuva de verdade, daquelas de arrombar barragens, de lavar ruas, levando a sujeira e a imundície que as pessoas deixavam atrás de si. Pois naquela sexta-feira o céu quase desaba sobre o sertão. Chuvarada das boas. Caiu mais água em uma tarde do que se poderia esperar para um mês inteiro em tempos de bom inverno. Chuva de fim de outono. Arrasando meio mundo. Estradas onde rios momentâneos corriam frouxamente. Baixios transformados em lagos. Riachos botando força de rios caudalosos. Cercas de arame farpado sendo arrancadas em muitas braças. Barrancos e árvores sendo arrastados pelas correntezas. 

Nas cidades, ruas, praças e avenidas praticando mergulho. Zefinha do finado Benvindo de Chico Pilombeta dobrou os joelhos diante do nicho de São Pedro, santo de sua devoção, e rezou quinhentos Pais Nossos e duas mil e quinhentas Aves Maria. Enfim, por volta das dezoito horas, a chuva arrefeceu. Foi, então, a hora de começar a contabilizar os prejuízos. Todavia, maiores seriam os ganhos. O povo da roça já podia começar a lavrar a terra para plantar. Os pastos acabados, a partir dali, seriam recompostos. O capim e a marmelada brotariam da noite para o dia. Com a chuva, a terra mostraria a sua força. 

Naquela noite, Severino de Valdivina de Peixotinho do Limoeiro bateu palmas na porta de Sinhá Margarida de Ponciano das Gameleiras, lugar de antiga engenhoca, outrora pertencente ao pai do Padre Fonsequinha, sacerdote virtuoso e de saudosa memória, cujas prédicas ecoam ainda hoje por todo o sertão. Padre arretado na oração e no destemor, que enfrentou de cajado na mão um bando de malfeitores, que se diziam cabras de Lampião, mas que não passavam de uns larápios de meia tigela, isso nos idos de 1934. Sinhá Margarida acudiu às palmas. Era ninguém menos do que o vereador Severino Calça Frouxa, cujo apelido lhe fora dado quando ele ainda era criança de calças curtas, pois sua mãe, Dona Valdivina, aproveitava nele as roupas do filho mais velho, Vadico, que era gorduchinho. Ao contrário do irmão, Severino, ou Bill, como era chamado, e como, em regra, são chamados no Nordeste todos os Severinos, era magrinho que dava dó. Logo, as calças de Vadico ficavam de fundilhos arreados em Severino. O pobre mais parecia um boneco de mamulengo vestido nas calças do irmão gorducho. 

Severino foi à casa de Sinhá Margarida, tia de Zuleica Olho Esperto, sujeita de belas feições e ancas largas, como era do gosto de Severino. Ele e ela eram namorados. Sinhá Margarida não gostava de Severino e somente o aturava por causa da sobrinha, por quem ela devotava maior afeição dentre as sobrinhas. Após cumprimentar a tia da namorada, Severino pediu para que ela guardasse uma mala de porte médio. A mala estava fechada com fechadura de segredo. Sinhá Margarida fez um muxoxo e mandou colocar a mala no quarto ao lado, que era o de visitas, mas Severino pediu para guardar no quarto dela, que era mais seguro. Ela o atendeu e nada perguntou. 

Na manhã daquele dia, bem antes das chuvas caírem, Pedro de Chico Caroço de Mamede de Julião estava desaconçoado. Andava de um lado para o outro, na calçada da agência do Banco Alvorada. O seu chefe, Roberto Louro, assessor direto do presidente da Empresa Brasil & Cia. Ltda., o Dr. Miguel Terremoto, fora flagrado com uma mala de dinheiro contendo notas novinhas em folha de 100 reais. Roberto Louro tentara, sem sucesso, uma vaga na Câmara Municipal. Ficara na primeira suplência de sua coligação e da qual Severino fora o último eleito. Porém, Roberto Louro assumira uma vaga na Edilidade, quando o vereador Antonino Peroba fora feito secretário municipal. Ele e Severino eram amigos de infância. 

Uma roubalheira danada fora descoberta na Prefeitura Municipal de uns vinte anos para cá. Basicamente, todos os ex-prefeitos e o atual, cada um ao seu modo, estavam incriminados. Secretários e ex-secretários, assessores e ex-assessores. Uma penca de empresários de ramos diversos da atividade privada. Uma cambada de ladrões que se apoderaram do poder e dos recursos públicos, do dinheiro suado dos tributos que o povo pagava. A cada novo dia, novas falcatruas eram descobertas. Um lodaçal fétido. Na operação policial denominada “Capinzão”, até os bois de alguns indiciados foram arrolados nos inquéritos para futuro sequestro. O fazendeiro Joselito armou para cima do presidente Miguel Terremoto. Gravou uma conversa entre eles, sigilosamente. Antes, o fazendeiro arrumou a vida de amigos de Terremoto em troca de facilidades indizíveis. 

A mala cheia de dinheiro fora entregue a Pedro de Chico Caroço de Mamede de Julião por um preposto do fazendeiro Joselito, afamado dono de fazendas de gado e muito mais. Era exatamente aquela a mala que Pedro pediu a Severino para guardar, em nome de Roberto Louro. Ocorre que a polícia, com autorização judicial, rastreava os passos da mala, ou de seus condutores. Pedro seria preso, no sábado pela manhã. Severino logo mais, à tarde. Roberto Louro, dias depois. E até Sinhá Margarida deu com as fuças no xadrez. Pobre mulher, que de nada sabia!

Passaram-se os dias. Mais falcatruas foram descobertas. Muita gente, àquela altura cortava prego. O fazendeiro Joselito aboletou-se no mundo. Dizia-se, na cidade, que ele estava passeando de lancha no mar da Flórida, nos States. Muito mais gente já se encontrava no xilindró. Tinha vereador afastado do Parlamento Municipal por determinação judicial. De três partidos diferentes, ex-prefeitos estavam presos. Um rolo desgraçado. A cidade estava em polvorosa. A imprensa desenrolava o rolo, ora pendendo para um lado, ora pendendo para o outro. As mídias sociais fervilhavam de notícias, verídicas ou não, e de comentários. Todos tinham o que dizer. Era uma farofada danada. Partidários de uns ou de outros se esguelavam para defendê-los. Vermelhos e verdes se engalfinhavam nas mídias. 

Enquanto os advogados ingressavam com pedidos de habeas corpus em favor dos endinheirados, Sinhá Margarida fora esquecida. Logo mais, somente ela restaria presa. Tico de Martelinho de Maria Chica, neto do famoso rábula, dos anos 50, Duda Capote Preto, não era rábula como o avô, pois rábula provisionado já não havia mais, contudo, como tinha ele a língua ferina como a língua do avô, disse em alto e bom som, no cartório de Zé Albuquerque, que a Constituição Federal assegurava que todos eram iguais perante a lei. Mas, Sinhá Margarida, inocente em toda aquela roubalheira, não era igual a Pedro, nem a Severino, nem a Louro, nem a Miguel Terremoto, nem ao fazendeiro Joselito. Aquela pobre mulher, que apenas prestara um obséquio ao namorado da sobrinha, acabaria sendo a única hóspede do xilindró. A única. Coitada!

Tico de Martelinho disse que, um dia, só Deus sabia quando, ladrão, de colarinho branco, ou não, haveria de ser visto e julgado simplesmente como ladrão. Simples assim. E que a cidade seria passada a limpo. Para tanto, dizia ele, o povo deveria deixar de servir apenas para povoar. Berrar nas ruas, já era alguma coisa, mas só isso não adiantava. Bater panelas era muito pouco. Somente uma revolução, uma verdadeira revolução de cidadania e de dignidade seria capaz de endireitar a cidade. Ouvindo o palavreado de Tico, neto do rábula Duda Capote Preto, o jovem padre Alberto Rocha, exclamou: “Que Deus te ouça, ‘seu’ Tico. Que Deus te ouça!”.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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