A ORELHA DO CACHORRO :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Deveras e provado restava que Zé de Fausto era um sujeito brioso, dono de sua casa e de seu nariz. Trabalhador. Bom filho, bom marido e bom pai. Meter-se com a vida alheia? Jamais. Botar os pés numa bodega, só na mais alta precisão. Demorar-se ao pé de um balcão lavado com cuspe gosmento de cachaceiro? Nunca, nunca, nunca.
Zé de Fausto morava no subúrbio da cidade, distante da Praça da Matriz, que era o ponto mais central da cidade, coisa de um terço de légua. Casa avarandada, sítio esparramado por boas cinco tarefas de terra. Dali tirava o sustento da família, que tinha muito bem do que passar, do que comer e vestir.
Na Praça da Matriz morava Aristides, dono de loja de tecidos e padaria. E dono, também, de boa solta de gado mestiço. Era quase vizinho de terra de Zé de Fausto. Aristides, porém, era um novato na cidade. Ali chegara há menos de cinco anos, já botando loja e padaria. A solta de gado era herança de sua mulher, que ali nascera e se criara, filha do afamado fazendeiro Benildes de Totonho Tapioca, mão de figa infeliz, que passava fome para juntar dinheiro.
Aristides Vilela da Fonseca Pimenteira. Esse o nome de cabo a rabo do comerciante e criador de gado mestiço. Era aparentado com gente graúda da política e da justiça. Sujeito pançudo. A pança mais parecia duas barricas encangadas. Gostava de vestir ternos de linho branco, daquele linho de primeira, cuja queda da calça já mostrava a qualidade e o preço.
O vaqueiro de Aristides, Maneco de Bastião de Margarida de Sá Dorinha, era também um bom caçador de espingarda, tocaia e arapuca. Caçava tudo que era tipo de caça, graúda e miúda. Caçava bicho de pena e de pele. E de casco também, como tatus-pebas, vezeiros em cavar defuntos, para se empanturrarem, como muita gente acreditava. Maneco tinha, então, bons cães de caça. Cachorros perdigueiros de muita valia. Um deles, que atendia pelo nome de Veludo, era achegado a Aristides. Não podia vê-lo, que logo lhe fazia graças na espera de mimos. Aristides gostava de alisar o pelo negro e aveludado do cachorro de Maneco. Aristides gostava de estumar o cão, batendo palmas: “Êcô... êcô...”. Explicando para quem não é da roça, estumar é açular, incitar, e é palavra encontrada nos bons dicionários. Não é, pois, palavra criada pelos tabaréus.
Tarde invernosa. Há dias, chovia à vontade. Inverno tardio, mas promissor. Os pastos, em todos os lugares, estiveram no casco, na areia pura. Isso há coisa de dois meses. De lá para cá, as chuvas começaram a cair. De início, uns pés d’água ligeiros, mal e mal molhando o beiço seco da terra. Depois de três semanas naquele chove-não-molha, eis que o inverno pegou de vez. Uma grandeza de Deus! Homens, mulheres e meninos jogaram-se no plantio de milho, feijão, fava e mandioca, nos quintais, sítios e malhadas. Os pastos enverdeceram novamente. Os riachos fizeram-se rios. Estradas enlameadas dificultavam a passagem dos transeuntes.
Naquela tarde, Zé de Fausto estava na casa de Maneco, seu vizinho. Conversavam sobre o inverno que prometia boas colheitas. Num dado momento, eis que Aristides riscou no terreiro de Maneco no Jeep azul com tração nas quatro rodas, bom danado para rodar naquelas estradas encharcadas. Ao descer do veículo, Aristides foi saudado por Veludo, que encostou as patas sujas na calça de linho branco do visitante. Quanto mais Maneco chamava Veludo e quanto mais Aristides tentava se desvencilhar do animal, mais este lhe lambuzava a calça de linho branco. “Saia daqui, seu peste!”, vociferava Aristides. Sem sucesso. A calça de linho branco de Aristides ficou com listas escuras.
Sem nada dizer, mas, fulo da vida, Aristides agarrou Veludo pela coleira e, dando cabo de uma faca, que estava no banco do passageiro, meteu-a na garganta do cachorro. O sangue espirrou na calça de linho branco, espirrou na grama verde. Maneco amarelou, agoniado. Não disse nada diante da cena grotesca. Sobre a grama verde, o corpo de Veludo, que se esvaia. Com pouco tempo, o cão bom de caça esticou a canela.
Aristides esbravejava. O filho mais novo de Maneco, um galeguinho magricela, apegado ao cachorro, chorava agarrado na saia da mãe.
Até então, Zé de Fausto estava quieto. Enquanto Aristides tentava limpar-se com um lenço, Zé de Fausto sacou da cintura uma faquinha de cortar sola, pois ele mesmo fazia suas alpercatas e as dos meninos, e cortou uma orelha do cachorro Veludo. Nisso, aproximou-se de Aristides, encostou a faquinha em sua goela e disse: “Um cabra que mata um cachorro desse jeito, cachorro também é. Cachorro gué do rabo fino. Você vai comer esta orelha. Engula sem fazer careta!”. Aristides gaguejou. A faquinha já riscando a pele do seu gogó. Um filete de sangue saindo. “Engula, seu gordo fio duma porca parideira!”. Zé de Fausto apertou mais ainda a faquinha na goela de Aristides.
No fim daquela tarde, muita chuva caiu. Invernão.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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