Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 12/08/2017 às 00:19
Pub.: 20 de agosto de 2017

Zefinha de Tião e a vela do padre Vergueiro :: Por José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana - (Foto: arquivo pessoal)

José Lima Santana - (Foto: arquivo pessoal)

No sertão das Baraúnas os casos se sucediam. Dos mais simples aos mais complexos. Todo santo dia podia-se mesmo dizer, novos casos aconteciam. Com gente e gente, com gente e bichos, com bichos e bichos. Acontecia de tudo. Cobra gigante que sugava o leite de mulher parida de novo, enquanto colocava o rabo na boca do bebê para entretê-lo, lobisomens dando carreira em sujeitos mofinos, mulher quebrando pote com água no terreiro da casa, para espantar mal olhado, do tipo que nem pimenteira malagueta era capaz de dar cabo, e tantos outros casos que nem o melhor escritor do mundo daria conta de enumerar e relatar. Quanto mais eu, suburbano desajeitado no manejar da pena, ou melhor, das teclas do computador.
    
Josefa de Pedro Cospe Fogo casou-se com Sebastião de Marcolino do finado Tito Sapateiro. Passou a ser chamada de Zefinha de Tião. Morena bem apanhada de ancas e tudo o mais. Tipo de mulher cobiçada no sertão e em todo lugar. Com certeza. Moça prendada no zelo da casa, na costura de tudo que era tipo de roupa e até no ler e escrever uma carta, coisa raríssima naquelas lonjuras castigadas pelo sol mais causticante que Deus permitiu que brilhasse sobre a face de todos os Brasis.
    
Tião, do seu lado, era um sujeito trabalhador, enfiado na lida do campo, botando roçados de milho, feijão, mandioca e algodão, além de labutar com três vaquinhas mestiças, que davam um leitinho que ele o vendia de porta em porta, nas casas de freguesias mais do que certas.
    
Qualquer um ou qualquer uma, a não ser um pequeno bando de invejosos/as que em todo lugar tinha e tem, reconhecia neles, Zefinha e Tião, um casal feliz. Porém, felizes, arrasadoramente felizes, eles o foram até o segundo ano após o casamento, assistido, como canonicamente convém dizer, pelo padre Martinho Felício de Souza Vergueiro, da família Vergueiro e Albuquerque, gente de fama desde os tempos do Império e em muitas partes do país. Quando o casal contraiu núpcias, o padre era um quase menino, ordenado há não mais de ano e pouco. Que padre simples, metido no meio do povo, um padre diferente de todos os padres das redondezas! Um verdadeiro pastor. Ajuizado e botando juízo nas cabeças cheias de minhocas. Em cabeças, inclusive, de clérigos de batinas mais surradas do que a dele.
    
Zefinha não engravidou naqueles dois anos. As línguas ferinas, atiçadas, sobretudo, por Dona Maria de Chico Canela Torta, que era, sem nenhum favor ou desfavor, a matraca mais infeliz que o diabo alimentou no mundo, ele, o zambeta, que fazia e faz seguidores onde o vento espalhava e espalha, e ele, o tinhoso, o três mil vezes maldito, ajuntava e ajunta. A velha espalhou que Zefinha tinha o “oveiro destrambelhado”, que nunca haveria de segurar menino. Ora, o que aquela desdentada sabia a respeito do ovário da mulher de Tião? Língua bifurcada de cobra caninana. De cobra ainda pior. Língua que arrastava outras línguas iguais, enfileiradas.
    
A mãe de Zefinha, Dona Carminha de Pedro Cospe Fogo, e a sogra, a mãe de Tião, Sá Isaura de Marcolino, sugeriram que a filha e nora buscasse amparo na casa de uma tal de Marocas do Brejão das Cobras, rezadeira afamada, que mantinha um terreiro de toré, embora as pessoas dissessem que era de xangô, para lhe dar um adjutório de valimento. Porém, Zefinha era igrejeira, devota de Santa Rita de Cássia, e recusou desviar-se dos caminhos de sua religião para aventurar-se nas veredas do que para ela não seria coisa bem-vinda. “Deus me dará um filho, quando for do seu agrado”, dizia.
    
Mais dois anos se passaram. Nada de filhos. Numa terra em que marido que não dá filho à esposa é chamado de galo de ovo goro, Tião começou a andar de cabeça baixa. Um filho era tudo o que ele desejava, e não mais do que Zefinha. Ele chegou mesmo a pensar e a confidenciar ao irmão mais novo com quem melhor se dava, dentre os oito irmãos e irmãs que ele tinha, que estava à beira de procurar mulher fora de casa para fazer um menino e provar que era galo que enchia ovo. Contudo, por respeito à mulher, ele não passou da intenção. Acomodou-se.
    
Era uma quinta-feira pela manhã, quando Zefinha, indo à cidade, que longe muito não era do povoado onde o casal morava, acompanhada por uma irmã, esta mãe de dois meninos e uma menina, encontrou-se com o padre Vergueiro, que, após tirar o chapéu e cumprimentar as duas mulheres, fazendo estancar o animal que montava, indagou: “Dona Zefinha, nada ainda de menino?”. Encabulada, ela respondeu: “Ainda não, mas, um dia, Deus vai olhar pra mim, padre”. O padre retrucou: “Eu irei ao Juazeiro do Padim Ciço. Sempre tive vontade de ver como são as coisas por lá. Se você quiser, eu acenderei uma vela e rezarei para que você tenha um filhinho”. E ela: “Pode ser padre. Em nome de Jesus, pode ser”.
    
Logo após a viagem ao Juazeiro, o padre Vergueiro foi mudado de Paróquia. Antes de arribar, ele garantiu que acendeu a vela aos pés da imagem do padre Cícero. Zefinha agradeceu e nunca mais o encontrou. Passaram-se os tempos. E eis que numa festa da padroeira, em que o padre, já maduro na idade, fora pregar, deu de cara com Zefinha, cuja fisionomia ele não esqueceu.  
O encontro deu-se bem em frente à casa paroquial, refeita pelo padre atual, que, não tendo a simplicidade do padre Vergueiro, derrubara a antiga, tão boazinha, e erguera uma casa de andar com vários quartos e muitos outros cômodos, numa cidade de poucos aquinhoados e de muitos pobres. Assim que a viu, o padre perguntou sorridente, como sempre: “A senhora já tem filhos?”. Zefinha respondeu: “Tenho, sim, padre. Eu tive três barrigas de dois e tive mais cinco avulsos. Ao todo já são onze, sete meninos e quatro meninas, padre”.
    
O padre Vergueiro alegrou-se: “Graças a Deus e à vela que, debaixo de orações, eu acendi aos pés do Padim Ciço. E onde está seu esposo, para eu cumprimentá-lo?”. Zefinha respondeu: “Ele foi ao Juazeiro, padre, para ver se apaga a bendita vela que o senhor acendeu”.

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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