O burburinho :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Tião Ceboleiro tinha madrugado naquele dia. Teve precisão de ir ao Riacho do Meio, povoado distante meia légua da Missão do Araticum. Era a terra de seus pais, João Vicente de Robertão de Sinézio e Maria das Dores do finado Vavá Pimenta. Vivos. O pai passava dos noventa e a mãe andava perto. Firmes e gozando boa saúde. Longe, certamente, ainda iriam. Tião vendera um cavalo de montaria a um primo, Valdivino de Totonho Bucho Grande, e fora entregar o animal, como prometido. Entrega feita, dinheiro no bolso, Tião Ceboleiro tomou o rumo da casa dos pais. Tomou-lhes a bênção. O café estava posto. O filho assentou-se diante de um cuscuz fumegante e de uma vasilha com leite gorduroso, a nata amarelada por cima. Ovos estrelados e carne de sol assada na brasa. Um capeado. Gordura vistosa. Os três comeram em silêncio como convinha. Conversas à mesa, somente se o chefe de família tomasse a iniciativa. Desde sempre, era assim.
Acabado o café da manhã, Tião indagou ao pai se ele pretendia vender as quatro cabras que viviam soltas no pequeno sítio. Cabras de boa raça. Boas de leite. A resposta foi “não”. No meio da conversa, pai e filho ouviram um burburinho vindo da estrada, que passava em frente à casa. O burburinho aumentou. Tião achegou-se da porta. Era um pequeno grupo de pessoas que conduziam um sujeito desconhecido para Tião, amarrado nos braços por um pedaço de corda de caroá. “O que é isso, moçada?”, perguntou Tião. Adiantou-se na resposta Marcelino Boca de Sapo, primo distante de Tião: “Este sujeito tentou fazer coisa feia com a filha de Manuquinha de Zé de Vito. Eu mesmo impedi o intento maligno deste satanás. Vamos levá-lo pro delegado tomar conta dele. Mas, antes, demos umas cipoadas nele e deitamos sal grosso pra curar os talhos”. Tião tirou o chapéu, coçou a cabeça e disse: “Cuidado, gente. Não vão fazer mais besteira, não. Quem deve dar cobro dele é o sargento Miguelão. É ele a autoridade”.
O grupo seguiu viagem. Tião despediu-se dos pais. Tomou-lhes a bênção e partiu a poucas braças do grupo que conduzia o malfazejo. Tendo negócios na cidade, acompanhou o grupo. Na cidade, a passagem do grupo pelas ruas causou ainda maior burburinho. As pessoas se agitavam nas portas e nas calçadas. “O que foi?”, Quem é este?”, perguntavam as pessoas curiosas e ávidas por novidades. A vidinha pacata da cidade era agitada por qualquer acontecimento fora da rotina cotidiana. Pessoas desocupadas, que nunca faltavam, engrossaram o grupo. Uma mulher reconheceu o malfeitor: “Este desinfeliz tentou fazer coisa que num se pode dizer com a neta de Sá Margarida de Pedrinho das Flechas, num faz cinco dias”. Alguém conseguiu achegar-se ao sujeito e deu-lhe um soco na cabeça. Marcelino Boca de Sapo impediu outras agressões.
No velho quartel da polícia, o malfazejo foi entregue aos cuidados do sargento Miguelão, que ali estava destacando há uns dez anos ou mais. Conhecido por todos, era bonachão, mas firme no riscado de suas funções como chefe do destacamento policial e delegado comissionado. Sentou-se o sargento para tomar anotações. Pergunta daqui, pergunta dali, tudo sendo anotado à mão, no livro de capa preta e sebenta. Pronto. O preso seria conduzido à cidade vizinha, sede da comarca, para, na delegacia regional, ficar à disposição das autoridades do fórum. O grupo se desfez e cada qual retomou a sua vida, retornou ao seu canto.
Meia-noite. No quartel de Missão do Araticum só tinha um preso. O dito cujo malfeitor. Cuidando da segurança do quartel, apenas um soldado, Maninho de Zé Tibúrcio, que tinha parentela na cidade, embora fosse natural de Timbaúba de Cima, dali distante umas vinte e tantas léguas. De sono leve, o soldado Maninho, tendo há pouco tempo sentado praça, foi despertado por um burburinho que vinha da cela onde estava o molestador de meninas. Levantou-se. Riscou o fósforo. Acendeu um candeeiro, pois energia elétrica ainda não era uma serventia da cidade. Dirigiu-se à cela. O preso estava rolando no chão, estrebuchando-se, como se estivesse possuído por uma coisa braba. E começou a falar coisas estranhas. E a gritar como um condenado. De um pulo, o preso jogou-se na grade da cela, como se quisesse derrubá-la. Foi contido pela ferragem. A cara do preso mais parecia a figura do diabo.
O soldado Maninho não era homem de amedrontar-se com pouca coisa. Sacou a arma, cujo coldre estava pendurado no ombro esquerdo e gritou a plenos pulmões: “Fio da gota serena, se tu escapar daí, seu tinhoso das seiscentas, eu lhe como na bala”. O malfazejo endiabrado parou. Estatelou-se no cimento frio do piso da cela. Enroscou-se em si mesmo. Enrodilhou-se como uma cobra. Soltou um gemido infernal. O soldado Maninho, com a arma na mão direita e o candeeiro na mão esquerda, manejou a luz para mais perto da cela. O malfazejo encantou-se. Virou uma cobra grande de língua de fogo. Maninho arregalou os olhos, soltou o candeeiro no chão e disse: “Vade retro, satanás das profundas!”. O candeeiro, no chão, continuava aceso. O soldado mirou a cobra grande e fez menção de disparar. Naquilo, abriu-se a porta do quartel. Era o sargento Miguelão, que morava na casa em frente ao quartel. Acordara com o labafero. Vinha com uma lanterna na mão. Mirou o facho de luz para dentro da cela. Assombrou-se. “O que é isto, soldado Maninho?”. O subalterno respondeu: “Deve ser o diabo em pessoa, que veio acabar com a gente, sargento!”. A cobra passou pela grade, sacudiu o rabo e derrubou o soldado e o sargento. Ganhou a porta e o mundo, para nunca mais aparecer.
Foi isso mesmo que o sargento e o soldado contaram ao povo. Porém, Tião Ceboleiro descobriu na Mata Grande, cidade para além do rio das Mercês, que o malfazejo se chamava Antônio Silva, primo da mulher do sargento Miguelão. O sargento e o soldado deram fuga ao malfazejo? É provável. Afinal, ninguém andava virando cobra por aí.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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