Aracaju (SE), 24 de novembro de 2024
POR: José Lima Santana
Fonte: José Lima Santana
Em: 07/10/2017
Pub.: 09 de outubro de 2017

A vingança do prefeito :: José Lima Santana

José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)

Deu-se o fato nos tempos dos trabucos e das tocaias. Do coronelismo. Tempos em que a política era, nalguns cantos remotos, verdadeira arte do cão. O diabo juntava e espalhava, ao mesmo tempo, sempre auxiliado por mentirosos e malfazejos. Em todo lugar digladiavam-se os chefes políticos. Em Aracati, cidadezinha perdida nos confins dos grotões, o prefeito Tibúrcio Veiga, vulgo Tibúrcio Cospe Fogo, mandava na política local há mais de trinta anos, elegendo-se prefeito ou elegendo comparsas seus, homens de sua confiança, que, eleitos, lhe passavam o mando da Prefeitura. Ele tinha, pois, o mando e o comando. Ninguém lhe fazia frente. Todos os opositores eram derrotados nas urnas viciadas. Governasse quem governasse o estado, a UDN ou o PSD, que ali, em Aracati, reinava Cospe Fogo. Com ele, ninguém podia. Tinha corpo fechado nos embates políticos. Nas duas únicas vezes em que um candidato a prefeito ameaçou ganhar a eleição, a morte de espreita apareceu na curva de alguma estrada. 

O diretor da instrução pública, como, à época, era designado o secretário de estado da educação, aportou em Aracati com pequena comitiva. Iria escolher o terreno para a construção de um grupo escolar, que era uma novidade. Poucas cidades tinham uma obra de igual porte. A comitiva da autoridade estadual chegou ao fim da tarde. Ali pernoitaria, para, na manhã seguinte, visitar localidades urbanas, a fim de escolher o lugar adequado para tão importante empreendimento público. A secretária da Prefeitura, na momentânea ausência do prefeito, dirigiu-se com a comitiva à pensão de Valdivino de Sá Luzia de Maria Terta, uma das duas pensões da cidade, mas, de longe, a de melhores condições para receber tão ilustre comitiva. 

Na pensão, diante do proprietário, a secretária demonstrou grandeza: “Olhe aqui, ‘seu’ Valdivino, todas as despesas destes senhores correrão por conta da Prefeitura. Sirva do bom e do melhor”. Valdivino apertou ainda mais os apertados olhos e disparou: “Dona Celinha, por conta da Municipalidade, não. Faz dois anos e um pouco mais que eu não vejo a cor do dinheiro da Prefeitura. E a conta não é pequena”. Foi um vexame! Dona Celinha pasmou. Amarelou. Titubeou. Procurou terra no chão e não achou. Constrangimento geral. A autoridade estadual mitigou a situação. Os funcionários públicos estaduais recebiam diárias para pagar os dispêndios. Não havia, assim, necessidade de a Prefeitura fazer mais despesas.

Tudo serenado, a comitiva instalou-se em três dos quartos da “Flor do Aracati”. O jantar foi servido após o banho de cuia, pois água encanada era um luxo pelo qual a cidade aspirava. Cuscuz de milho ralado com recheio de dicuri e queijo de coalho. Macaxeira cacau do quintal da própria pensão. Feijão e arroz temperados. Carne de sol assada na brasa. Galinha de capoeira de cabidela. Um assado de porco tostadinho de dar gosto. Um ensopado de carneiro. Uma farofinha de ovos. Licores de jenipapo e de jabuticaba, para abrir o apetite. E mais, para a sobremesa: doce de leite, pudim navegando em grossa calda, doce de goiaba e de mamão. 

A comitiva fartou-se. O diretor da instrução pública, deseducadamente, arrotou à mesa. Um despropósito. Mas, era uma autoridade da capital. Ninguém reparou. No dia seguinte, o prefeito aguardou a comitiva, na Prefeitura. Sendo informado pela secretária da desfeita que Valdivino praticou, Cospe Fogo não foi à pensão. Localidades visitadas, o diretor da instrução escolheu o lugar onde o grupo escolar deveria ser construído. O governador prometeu, em campanha, que construiria a obra. A sua palavra era um tiro certo. A comitiva retornou à capital, no meio da tarde. 

Durante a madrugada, Pedro Carroceiro trabalhou sem parar com dois ajudantes. Funcionário municipal, ele recolhia o lixo das casas, na carroça puxada por um burro, que, se gente fosse, já estaria aposentado. Ao amanhecer, Valdivino deparou-se com a frente da pensão entupida de lixo. Era a vingança do prefeito, que deu ordem a Pedro Carroceiro para limpar a cidade e entulhar a pensão. Na fachada da pensão, de uns doze metros, a pilha de lixo subia a mais de metro. Cães vadios cuidavam de espalhar a sujeira. A fedentina já conspirava contra o ar puro da praça.

Valdivino era um homem pacato, mas de sangue no olho e de pelos nos buracos das ventas. Contratou quantas carroças disponíveis pôde encontrar. Limpou a frente da pensão. O lixo foi acumulado num terreno baldio a ele pertencente. À meia-noite, as carroças voltaram a trabalhar e despejaram o lixo na porta da Prefeitura. Os adversários do prefeito Tibúrcio Cospe Fogo riam às gargalhadas com o feito de Valdivino. Vingança contra vingança. Todavia, o prefeito virou a besta fera. Ao ser avisado sobre o monte de lixo na porta da Prefeitura, mandou convocar Zé Grande, afamado pistoleiro de Brejo das Cobras, seu melhor pau-mandado, a fim de dar uma lição no dono da pensão, matá-lo com se fazia com um cachorro sarnento. Zé Grande morava no povoado Baixa Limpa, que era o povoado mais distante da sede municipal, e, por isso, somente chegaria à cidade no fim da tarde. 

O dono da pensão foi avisado de que corria perigo. Na cidade havia um bocado de leva-e-traz. E Tibúrcio não escondia de ninguém o seu intento. Era até bom que a notícia se espalhasse para que Valdivino se borrasse o dia todo. O sol espalhava brasas pelo mundo. Não corria nem um soprinho de vento. Muita gente cochichava nos bares e nas ruas. Valdivino que se cuidasse. Dele já se dizia que era um homem morto. 

Eis que Zé Grande, o pistoleiro, chegou à cidade. Dirigiu-se à Prefeitura, onde se encontrava um ajuntamento de cupinchas do prefeito. Zé Grande recebeu as instruções. Delas não gostou. Então, tinha saído de casa para matar “seu” Valdivino? Enraiveceu-se. E disse, desaforadamente: “Prefeito, eu já lhe servi uma ruma de vezes. Já botei gente demais no cemitério para a sua serventia. Mas, ‘seu’ Valdivino é meu vizinho de terras, um bom vizinho, e é um homem honrado. Arranje outro para fazer o serviço, se puder, porque desta vez, eu estou contra o senhor. Mudei de lado. Com ‘seu’ Valdivino ninguém mexe. E é melhor não se meter comigo”. Recado dado. Por aquilo, Cospe Fogo não esperava.  De raiva, tremeu na cadeira. E foi assim que Valdivino escapou da morte. No ano seguinte, muita gente empurrou Valdivino para a política e ele venceu a eleição para prefeito contra o candidato de Cospe Fogo. 

Poucos dias após a posse, Valdivino sofreu um atentado. Quase morreu. O autor dos tiros foi preso. Delatou. Cospe Fogo tinha sido o mandante. Também foi preso. O júri foi desaforado para a capital. Sete a zero contra o réu, por tentativa de homicídio. O coronelismo mixou em Aracati. 

NOTA: Sobre o artigo intitulado “Algumas Mentiras”, publicado no Jornal da Cidade e reverberado no site “Clicksergipe” e no blog “Primeira Mão”, na semana passada, em minha página do Facebook foram registradas mais de 370 curtidas e mais de 70 comentários, em solidariedade a este subscritor. Nunca temi os embates da vida. Não os provoco, mas deles não fujo quando sou instigado, nem mesmo quando vêm da podridão de covas rasas. Nos meus 41 anos de militância na Igreja, eu absorvi o que disse o Mestre: “Eis que vos dou poder para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo, e nada vos fará dano algum” (Lc 10,19). Que todos vivam em paz. Se puderem e se quiserem. 

*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE

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