O BARÃO DA PATIOBA E AS QUÍMICAS :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
O tataraneto do Barão era metido nas químicas. Inventava fórmulas mirabolantes. Misturava uma ruma de pó de todas as cores, fazia um fumacê desgraçado, de vez em quando papocando umas coisas, frascos retorcidos e o escambau. A vizinhança inculta o tinha na conta de um mago, um homem de sabedoria incalculável. E o seu palavreado difícil para explicar as químicas? “Vôte!”, como diria Chico Ferrugem, antigo amigo e companheiro de caçadas nem sempre bem sucedidas do tataraneto. Aquilo nos tempos idos, da adolescência e da juventude.
João Torróio de Malaquias de Pedrinho do Brejo Seco, viúvo pela segunda vez, ali beirando os oitentão, estava de asa caída para o lado de Mariquinhas de Marta de Zé Pequeno, solteirona, igrejeira, donzela de fé intocável. E de intocáveis outras coisas também. Ela que o dizia. Pois João Torróio bandeou-se para o alpendre avarandado do Barão. Era uma tarde de sábado. O Barão dormitava na cadeira de balanço após ter almoçado uma baita moqueca de siri mole, seu prato preferido, antecedido de duas boas doses de whisky 18 anos, um do rótulo azul. Coisa de nobres. E de sobremesa, uma coisinha mais do que comum, porém, que o Barão adorava, como criança: mariola. Além de mangas. Comia aos montes. O Barão roncava. João Torróio não o quis incomodar. Abancou-se por ali à espera do último ronco do Barão naquela tarde de vento fresco, que não cessava de balançar as folhas da mangueira espada, no oitão do sobrado centenário, onde, outrora, festas e acordos políticos foram celebrados.
A dona Baronesa mandou servir um ponche de limão a João Torróio. Afinal, além da delicadeza própria da esposa do Barão, comentada na Missão e até na capital, João Torróio era quase da família. Ele fora casado com uma prima distante do Barão, há cinco anos falecida.
Além de dono de muitas terras na Patioba, o Barão era professor de química na capital, com teses publicadas. O quê? Era sim. E ele enchia as bochechas para dizer que tinha sido aluno do professor fulano, do professor beltrano e do professor sicrano, na Bahia. Ele tivera até mesmo um professor estrangeiro. O Barão não era brinquedo, não.
O laboratório do Barão ficava nos fundos do sobrado. Ali, por vezes, ele passava manhãs e tardes, nos fins de semana, metido com fórmulas e mais fórmulas. Jocosamente, dizia-se, na Missão, que ele tentava transformar um banco de madeira num boi. Era pura gozação dos seus irmãos e dos amigos de carteado.
Enfim, o Barão roncou o último ronco naquela tarde de sábado, depois da moqueca de siri mole e de algumas das afamadas mangas da Patioba. “As mais doces do mundo”, vivia a repetir o Barão. Ao despertar, tirou com a “costa” da mão esquerda a librina dos olhos. Vislumbrou o quase parente, João Torróio. E o cumprimentou: “Como vai, primo?”. E o visitante: “Na santa paz de Deus. Mas, primo Barão, eu estou carecendo de um dedo de prosa e de um adjutório”. “O que manda o primo?”, indagou o Barão, ajeitando-se na cadeira de balanço. João Torróio olhou para o Barão, coçou a cabeça descoberta, com o chapéu preto de baeta na mão direita. Chegou para mais perto do Barão a cadeira de vime com assento alcochoado. Olhou para os lados, desconfiado, e sussurrou: “Primo Barão, você que é homem de ciência, que sabe fazer coisas nas químicas, precisa dar um jeito cá n’eu. O primo Barão sabe que eu estou precisado de alguém para tocar meu resto de vida. E eu estou de olho na filha de Marta de Zé Pequeno, que é uma donzela de igreja, fornida e aparelhada”. O Barão com ares nobres rebateu o cochicho: “Mas, no que se deve dar a minha serventia, primo?”. João Torróio emendou: “É aqui que o primo entra: na minha idade, eu estou de pólvora molhada. Tiro certeiro não hei de dar. Por isso, preciso do seu adjutório. O primo me fará o favor de me dar uma fórmula que me esquente de volta a pólvora. Preciso de pólvora seca, para não passar vergonha, no novo casamento”.
Naquele instante, o Barão quase levantou da cadeira de balanço. Apalpou o bolso da camisa, onde estavam um charuto e o isqueiro. Acendeu o cubano legítimo. Tirou, resfolegando o peito, as primeiras baforadas. A fumaça cheirosa rescendeu no ar. Não era um dos charutos mata-mosquitos que João Torróio fumara por muitos anos. Porém, há uns dez ou doze anos ele não mais fumava. Recomendação médica.
“Primo João, as minhas químicas são de outro tipo. Não são farmacêuticas. Eu não tenho fórmulas mágicas que dê jeito em coisas mortas. O primo vai me desculpar, mas eu não lido com esse tipo de adjutório, de pólvora molhada etc.”.
Decepção. João Torróio decepcionou-se com o primo Barão. Ou quase primo. Aliás, a partir dali, nem primo, nem quase primo. E, a bem dizer, nem Barão. Onde já se tinha visto um Barão de título comprado na Corte por uns tostões ensebados? Um título representado por um papel furta-cor? Aquilo era título de Barão? O tataravô do atual Barão talvez nem tivesse comprado o tal título. Devia ser invenção dele ou do povo. Título que ninguém nunca viu, a não ser Melquíades Félix Simões das Palmeiras, que dizia ser o papel do título do tipo furta-cor. Somente ele, e mais ninguém, sabia do título de baronato. Um papel furta-cor...!
João Torróio saiu da casa do Barão sem se despedir. Decepção. Um Barão que não era Barão de verdade. Um primo ou quase primo que se negava a fazer uma de suas químicas para lhe poder secar a pólvora molhada. Decepção.
A boquinha da noite chegou. E com ela, os pernilongos. O Barão recolheu-se. Foi saborear o mingau de puba da dona Baronesa. Supimpa! E enquanto ele saboreava o mingau quase colando os beiços, pensou, tristemente: “Não é somente João Torróio que está com a pólvora molhada!”.
Feche o pano.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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