A salvação de Ticinha :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo Pessoal)
Não. Naquele ano, não. O sol quando aparecia era para dar bom dia ou boa tarde e, logo, se recolhia. O tempo não esquentava muito. Não faltavam borboletas, mas, as chuvas matavam as lagartas mal e mal saídas do casulo. Os plantadores de milho e feijão não teriam, naquele ano, as sócias miseráveis e comilonas. Marcinho de Zeca Tabuleiro tinha, sim, que dar graças a Deus. Uma safrona estava para chegar. Casado de novo, a mulher, Ticinha, esperava o primeiro filho. Eram bênçãos sobre bênçãos.
O milho tinha aumentado de preço nos últimos anos. Muita gente estava deixando de lado outras lavouras para se dedicar ao plantio do milho. Sementes selecionadas e novas formas de plantio garantiam uma produtividade nunca antes vista por aquelas bandas. Marcinho era possuidor de boas terras, propícias para a lavoura. Jovem bem aquinhoado quer pelos esforços próprios, quer pelo legado de uma tia solteirona, que o tivera como filho e para quem deixara seus pertences, inclusive boa parte das terras que ele possuía.
Ticinha, sua jovem esposa, era, na verdade, Ticiana. Filha de Alfredo Pires Peixoto, gente de Pernambuco, e conhecido como Alfredão Cospe Fogo, porque quando ele falava era como um vulcão em erupção. Soltava fogo e fumaça. E se estivesse brabo, eram labaredas da altura dos céus. Tinha, porém, um coração molim, molim, molim, como caldo de doce de banana em rodinhas.
A esposa de Marcinho era uma beldade. Linda moça. Prendada e estudada. Tinha tirado o ginásio. E estudava para ser professora. Marcinho fora seu colega ginasiano. Largara os estudos para dedicar-se à vida no campo. Gado e roçados para cuidar.
Naquele fim de tarde, Marcinho regressava para casa. Desde a madrugada, um pé d’água intermitente enchia o mundo. Parecia um dilúvio. Talvez apenas um pouco menor do que aquele de que fala a Bíblia, o dilúvio da arca de Noé. O riacho do Zabelê botava água sobre os galhos dos pés de paus. Um verdadeiro mar. Ainda bem que ventava pouco. Do contrário, os pés de milho seriam virados pela ventania. Um prejuízo danado! Mas, graças a Deus, isso não acontecia. Ruim mesmo era para o feijão que estivesse em floração. As chuvas fortes derrubavam as flores e a plantação se perderia. Marcinho não plantava feijão, a não ser uma mão cheia de sementes no fundo do quintal, que era grande, quase uma chácara.
No fundo da casa de Marcinho e Ticinha passava um córrego. Coisa de pequena monta. Corregozinho tísico, que vinha da fonte de “seu” Alcides Boca Mole, cortando malhadas e quintais e desembocando lá adiante, coisa de meia légua abaixo da morada de Marcinho, no riacho do Zabelê.
Havia algo estranho na casa de Marcinho quando ele apeou do cavalo castanho. Montaria mimosa. Quarto de milha. Comprado por um dinheirão. Aliás, daquele ele tinha alguns. Gostava do que era bom e bonito. E tinha posses para tanto. Um jovem promissor com uma família em formação e, igualmente, promissora. Ao encontro dele correu uma irmã, Margarida. Eram, ao todo, seis irmãos, sendo ele o único varão. Cinco irmãs que lhe paparicavam e das quais ele gostava com o amor próprio de irmão mais velho e zeloso. Antes que a irmã lhe dirigisse a palavra, ele ouviu vozes agoniadas e prantos. “O que foi, Margozinha?”, indagou Marcinho. E ela: “Uma desgraça!”. E, aos atropelos, relatou-lhe o ocorrido.
Ticinha fora socorrer o cãozinho que Marcinho tinha lhe dado duas semanas antes. Era, por enquanto, a companhia dela, nas necessárias ausências. Apolo tinha caído no córrego, cujas águas tinham engrossado em demasia. A esposa de Marcinho buscou resgatar o cãozinho tentando fazer com que ele subisse numa tábua que ela estendeu ao seu encontro. Todavia, as águas estavam muito ligeiras. Ela acompanhou a descida de Apolo por uns trinta metros ou mais. De repente, escorregou e também desceu nas águas escuras. Tentou segurar-se nas ramagens, mas não conseguiu. Ela não sabia nadar e, ainda que soubesse, talvez não encontrasse valimento. O córrego estava brabo. Ela submergiu e emergiu algumas vezes. Mariano de Soarino do Cerro Azul e Chiquinho de Maria Bole-Bole, que por acaso passavam por ali, a socorreram. Lançaram-se ao córrego e conseguiram resgatá-la. Mais morta do que viva. Engolira um pote de água.
Os dois salvadores chamaram os pais e as irmãs de Marcinho, cuja casa era logo ali. Fizeram com que ela expelisse boa parte da água engolida. Porém, ela não deu cor de si. E foi naquele estado que Marcinho encontrou a sua jovem esposa.
Namoro nascido na escola. Primeiro encantamento dele e dela. Casal formoso. Marcinho encontrou a esposa prostrada. O pulso quase a zero. Desfalecida. Se não fosse o minguado pulso, dir-se-ia que estava morta. Talvez não durasse muito. A morte poderia ocorrer a qualquer segundo. Um cunhado de Marcinho, João Tripa, magro como um caniço, acabara de chegar com o carro do sogro. “Vamos para a cidade. Lá o Dr. Milton poderá salvar a vida dela!”. Dr. Milton era um médico de fama. Um médico como poucos. A cidade era bem pertinho. Légua e meia de distância.
Com jeito, Marcinho tomou a mulher nos braços. Duas lágrimas escorreram-lhe face abaixo. Com ele e o cunhado foi a sua mãe, Dona Cristina. No carro de Marcinho foram o pai e as irmãs. Alguém da família foi avisar aos pais de Ticinha, no povoado vizinho, logo abaixo da residência do jovem casal.
Ao chegarem à cidade, o Dr. Milton não se encontrava. Estava em viagem. No pequeno hospital, encontrava-se apenas uma auxiliar de enfermagem, por sinal, prima de Ticinha. Uma vez posta no leito, a prima, muito nervosa, tomou-lhe o pulso. Uma, duas, três vezes. Estava cada vez mais nervosa. “Não bate mais, gente! Não bate mais!”, disse ela, que desandou a chorar. Choro geral. Marcinho ajoelhou-se diante da esposa. Segurou a mão direita dela. Com a outra mão, alisou o ventre onde o primeiro filhinho estava abrigado. Não chorava. Lembrou-se do que dizia a tia que lhe deixara a herança em terras e gado. “Não houve no mundo dor maior do que a de Maria Santíssima diante do seu Filho na cruz”. Ele apertou com firmeza a mão de Ticinha. Era um jovem crente e temente a Deus. Fazia suas orações diárias, como lhe ensinara sua mãe e sua tia, com quem ele morou nos tempos de ginásio, na cidade. Rezou. Duas orações corridas. Pai Nosso e Ave Maria. Era, contudo, o que saía do mais íntimo do coração, expressão de uma fé ainda rude, porém, a fé de alguém que, confiante, esperava por um milagre.
A mãe de Marcinho compreendeu aquele momento de intimidade do seu filho com o Criador. Fez com que todos se retirassem dali. Ela, porém, ficou encostada no portal. Depois, também, ajoelhou-se. Orou. Lágrimas escorreram dos seus olhos. A dor do filho era a dor da mãe. Como Maria. De repente, Marcinho gritou: “Ela está viva! Ela está viva!” Estava sim. O pulso batia levemente. Mas, batia. Ticinha salvou-se. O cãozinho também, pois alguém lhe retirara da água do córrego, ofegante, mas vivo.
*PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
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