O JUMENTO CAPRICHOSO :: Por José Lima Santana
José Lima Santana* - jlsantana@bol.com.br
Cosme Cochilo de Véio zanzou por aí, batendo pernas por estradas, caminhos e veredas. O jumento Caprichoso fugiu. Jumento inteiro, que servia para cobrir jumentas e éguas. A procura era grande. E Cosme faturava com ele um bom dinheirinho, que lhe valia como estimável adjutório.
Em torno de umas dez léguas em quadra, ninguém dava notícia do Caprichoso. Algum malfazejo teria dado sumiço ao jumento mais afamado do Brejão da Coruja? Teria Caprichoso servido ao capricho nefasto de algum larápio? Afinal, muita gente gostaria de ter um animal daquele quilate. Era, a bem da verdade, ouro em forma de animal. Jumento de porte avantajado, pelo brilhoso, bicho de teimosia desmedida, que quando cismava de empacar, durava horas parado sem tomar conhecimento da vida e do mundo. Ora, ora, como se um animal irracional pudesse tomar conhecimento de alguma coisa. Instinto não gera conhecimento, hão de dizer os sábios, mesmo os de ocasião, que, sim, são muitos. Aliás, muito mais do que se pode imaginar. O que não falta neste mundo de meu Deus são sujeitos e sujeitas metidos e metidas a donos e donas da mais vasta e profunda sabedoria. “Pobres coitados/as!”, haveria de relinchar o jumento Caprichoso.
Era quase meio-dia de uma quinta-feira. O sumiço do Caprichoso deu-se na segunda-feira, dia da feira semanal da cidadezinha perdida nos confins de Judas, onde o vento fez a curva e quebrou cinco costelas, como dizia Ferreirinha de Chico Bosta de Boi, o pior barbeiro do mundo, mas, nem por isso, deixava de ser o mais procurado do lugar. Não pela destreza no ofício, mas pela boca solta que tinha e que falava de Deus e do mundo. Todos gostavam de suas lorotas. Língua comprida. Língua de fel.
Cosme Cochilo de Véio procurava por Caprichoso desde a manhã da terça-feira. Rodou por aqui e por ali. Foi do Brejão da Coruja ao Monte das Argolas. Do Tabuleiro de Severo à Gruta de Maria Preá. Das Timbiras ao Campo Largo. Da Terra Vermelha ao Barro Alto. Nada. Nem sinal do jumento. Teria se encantado? Se avultado? Diziam os antigos que a jumenta de um tal Pedro Tanajura tinha se “envurtado”, numa noite de sexta-feira, treze de agosto. Noite de lua cheia, de aflições e de encantamentos. Noite de doidos saírem portas afora, ganhando o mundo. Pois foi, então, que naquela noite, a jumenta Miroró do tal Tanajura envultou-se. De quando em quando, diziam, a envultada aparecia em forma de assombração, correndo trechos e assustando as pessoas. De muito conversar era o povo antigo.
Naquela quinta-feira, ao meio-dia, Cosme Cochilo de Véio, filho de Bertulino de Américo de Julião e de Sá Maria Coça-Coça, cansado, tomou assento debaixo de um pé de maria-preta. Sol a pino. O suor descia em volta do pescoço como água de enxurrada. Tirou da cabeça, aliás, um monumento de cabeça, mais parecendo uma bola de couraça, daquelas que o time de pernas de pau do povoado costumava usar nas peladas de fim de semana, o velho chapéu de couro, encardido pelo tempo. Abriu o embornal e dele arrancou um naco de carne de sol assada na brasa, fria como um defunto passado das horas, que ele carregava numa pequena mochila com um punhado de farinha de mandioca e uma banana d’água. Comeu. Depois, sacou da cabaça, que carregava a tiracolo, e bebeu uns goles. Arrotou. Arrotozinho nanico. Estava sem ânimo para prosseguir a caminhada. Nenhuma notícia do jumento Caprichoso. Nada, nada, nada. Não lhe custava tirar um cochilo. A sombra da maria-preta era mais do que convidativa. Encostou as costas no tronco do pé de pau. Adormeceu.
Era a boquinha da noite quando Cosme Cochilo de Véio deu cor de si. Diga-se de passagem, que o apelido Cochilo de Véio não era porque ele era um dorminhoco. Nada disso. Era, sim, porque ele era meio lerdo de entendimento, como se vivesse cochilando como um idoso sofrido, abandonado e enfadado da vida. Idosos sofridos e abandonados há muitos por aí, infelizmente. Despertando, Cosme assustou-se. “Ih, perdi a hora!”. Levantou-se para seguir viagem. Não muito longe dali ficava o Vale Encantado. Lugar bonito, plano de dar gosto. Um riacho chorava dia e noite naquele lugar, as águas descendo devagarzinho como se não quisessem descer, para encontrar o rio Maxixe e, engrossando-o, chegar ao mar. Adiante, ficava o sítio de um parente de sua mãe, Toninho Pereba. Ali, ele teria pouso certo e seguro. Tocou em frente.
Cosme Cochilo de Véio não andou nem duzentas varas e eis que ouviu um relincho conhecido. Só podia mesmo ser Caprichoso. Até que enfim. “Louvado seja Deus!”, disse ele de si para si mesmo. Mas, onde estava o jumento? Outro relincho. Mais perto. O animal estava por ali, pertinho, pertinho. Terceiro relincho. Este, porém, veio do alto de um umbuzeiro. Árvore frondosa e de boa serventia pelos seus frutos tão apreciados no sertão. Ah, uma umbuzada com leite grosso de vaca mestiça, como a vaca que ele possuía, Estrelinha, era uma gostosura! E um fortificante capaz de levantar defunto há anos enterrado. Um relincho vindo do alto da árvore? Cosme pensou que estava endoidecendo. Estava não.
O dono aflito do jumento Caprichoso ouviu um farfalhar de folhas. Até parecia coisa do outro mundo. De repente, na noite de lua cheia, o clarão prateado embelezando o mundo, Cosme Cochilo de Véio pôde ver dois jumentos voando e, aproximando-se dele, soltaram relinchos como que zombeteiros. Então, Cosme pensou no que diziam os antigos. Seria a jumenta envultada de Pedro Tanajura que tinha seduzido o seu Caprichoso? Era sim.
Nas quebradas do sertão, muitas coisas aconteciam. Eu juro aos leitores que o relato que acabaram de ler é mais verdadeiro do que dois e dois são cinco. Palavra de um homem de fé.
PADRE. ADVOGADO. PROFESSOR DA UFS. MEMBRO DA ASL DA ASLJ E DO IHGSE
Confira AQUI mais artigos do José Lima Santana
Confira AQUI mais artigos da autoria de José Lima Santana publicados no ClicSergipe antigo